Cidadão Cinéfilo – A Oligarquia do Gosto

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Em primeiro lugar, aquando de cada começo, urge principiar pelo ponto de partida. Por outras palavras, arrancar a partir do verbo. Neste caso, pelo verbo “criticar”, pois é a crítica cinematográfica que está aqui em causa. Em jeito de editorial pessoal, gostaria, portanto, de dedicar o meu primeiro texto neste espaço uma pequena reflexão acerca da crítica de cinema e do que poderão esperar de mim aqui.

“Crítica”, que partilha a raiz etimológica com a palavra “crise”, remete, na sua génese, para o acto de separar (do grego krinein), como quem separa o trigo do joio, ou o que é bom do que é mau. Porém, tal exercício de divisão terá de ser pautado por referências e critérios (eis uma outra palavra da família) que sustentem a validade das considerações. Deste modo, a crítica é inerentemente pessoal e intransmissível. Cada crítico, que é cada espectador, tem uma experiência distinta da obra de arte.

Porém, devido ao prestígio intelectual e caché social de diversas correntes de pensamento que, por estratagemas de poder que não cabem aqui discutir, muitos dos alicerces das actuais críticas cinematográficas partem do pressuposto de que existe uma hierarquia de valores (e de espectadores, de resto). Acontece que a grande maioria destas correntes de pensamento é de algum modo tributária de um tronco comum de avaliação das artes no ocidente, desenvolvido e sofisticado ao longo dos séculos pela filosofia estética. Em suma, isto traduz-se muitas vezes na separação entre o racional e o emocional, que por seu turno leva a uma separação entre o entretenimento e a arte. Como é evidente, as questões sociais e a conotação do gosto com classe vêm piorar ainda mais a situação. Assim, o entretenimento, a falta de seriedade (que é como quem diz, o humor), a psicologia de bolso e tudo o que seja “acessível e barato” é associado à baixa cultura, enquanto que o que é particularmente difícil, enigmático, despejado de utilidade para além da função de “ser”, é colocado debaixo da categoria de alta cultura. Depois, há obviamente todo um espectro de tons de cinzento, aquilo a que se convencionou chamar de “middlebrow”, mas o mundo continua em muitos casos a ser uma espécie de chiaroscuro Bressioniano.

Ao contrário do que poderia ser expectável, a baixa cultura não encontra necessariamente um correspondente directo nas classes sociais mais baixas, nem a alta cultura é um exclusivo dos privilegiados. Deste modo, poderá haver aristocratas a rir perdidamente com as tropelias de Benny Hill e desempregados endividados a vibrar com o acorde do Tristão. Com a democratização de certas artes, como a música ou o cinema (que, devido às suas origens populares e “cross-class”, travou uma luta de décadas até se afirmar enquanto arte), em que o acesso é conseguido de forma simples e barata, surge uma nova luta de classes, quiçá em resposta à luta tradicional. Todavia, o que está aqui em causa não é de todo o capital económico, mas antes um outro factor que define de forma tão ou até mais importante os sujeitos: as suas escolhas; o seu gosto. Por outras palavras, aquilo a que Bourdieu chamou de “capital cultural”. Como seria de esperar, tal como o capital económico, também o cultural depende em grande medida do “valor apercebido” das obras e é passível de ser acumulado.

Como praticamente tudo, também o valor é uma construção que existe no absoluto. Trata-se da criação de uma aura ou de uma expectativa em torno de determinado objecto, obra, pessoa ou marca. O cinema é particularmente atreito a esta questão. Voltando ao que foi dito, o empenho e o investimento que cada um dedica ao conhecimento do mundo artístico e à compreensão da obra de arte são assim como que a moeda de troca do mundo capitalista da cultura. A lógica é que quanto mais “rico” se é mais influente se pode ser e mais credível é o julgamento. Isto parece fazer sentido, pelo menos, desde os três atenienses. O problema é que, se pensarmos esta questão pelo lado da luta de classes, esbarramos com um inevitável problema: o poder, a luta por esse mesmo poder e a estratificação da sociedade. Trocando por miúdos, deparamo-nos com um elitismo irredutível que tem vindo a justificar a posição paternalista de dizer que os filmes de Pedro Costa ou de Godard são obras-primas imprescindíveis ou que não devemos perder tempo com os American Pie. Tal postura, que repudio, parte precisamente da ideia de uma hierarquia. Esta ideia pode fazer sentido no contexto académico, mas não para um público mais geral, pelo simples facto de que filmes diferentes tentam atingir objectivos diferentes e se se olhar para um filme através de critérios estanques é normal que só alguns consigam uma boa pontuação. Assim, outros filmes que não se enquadrem em certo critério, são lixo.

Acontece que, na minha opinião, o problema não é dos filmes, mas sim do crítico, pois é ele ou ela quem está a impor um sistema de avaliação, e esse acto pode estar completamente fora da esfera de alcance e de intenção do filme e de quem o fez. Assim, parece-me mais interessante uma abordagem em que o crítico se agilize no sentido de tentar entender o filme na sua essência e nas suas intenções específicas do que uma aproximação em jeito de “check-list” que tente sistematicamente controlar se as obras correspondem aos “padrões de qualidade” e aos “requisitos mínimos”. A ideia é entender o filme por aquilo que ele é e não por aquilo que se gostaria que fosse ou se acha que ele deveria ser.

Sou leitor ávido e frequente de crítica cinematográfica (bem como literária, musical, teatral, etc…). Curiosamente, embora assista a uma pluralidade normal e saudável de opiniões, dificilmente consigo encontrar, nomeadamente em Portugal, raciocínios que saiam fora do esquema hierárquico e constrangedor que descrevi inicialmente. A grande maioria dos críticos parece ter uma ideia pré-concebida acerca do que é o cinema ou aquilo que deveria ser. Interessantemente, essa concepção é bastante semelhante nas entrelinhas.

Concluindo, quanto a mim, recuso-me a pactuar com esta “oligarquia do gosto”, que “ex-cathedra” vem jorrar luz sobre o que é bom e o que é mau. O espectador está por sua conta e risco. Eu só estou aqui para escrever acerca dos filmes e de outras coisas a propósito deles. Por vezes escreverei sobre longas ou curtas, outras vezes sobre festivais e, provavelmente, referir-me-ei a amiúde a questões ligadas com cultura cinematográfica e cinefilia. Não terei uma linha específica de avaliação e tentarei partir de espírito aberto para cada nova visualização, contando que a obra em causa me inspire.

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