“Cidade Rabat”, de Susana Nobre – Somos todos aliens

Raquel Castro em "Cidade Rabat", de Susana Nobre ©Paulo Menezes Raquel Castro em "Cidade Rabat", de Susana Nobre ©Paulo Menezes
Raquel Castro em "Cidade Rabat", de Susana Nobre ©Paulo Menezes

Susana Nobre estreou o seu mais recente filme na Berlinale por entre grande aceitação e elogio e compreende-se perfeitamente: é um filme que carrega dentro de si a capacidade de se sentar e olhar para temas dos quais não se fala em abundância, sobretudo na sociedade portuguesa, onde o silêncio é muito mais ensurdecedor do que as palavras.

Apesar do passo lento e, por vezes, das sequências que avançam aos soluços, “Cidade Rabat” encerra em si os conceitos que convenientemente transformam todos os seres humanos em eternos alienígenas, mesmo quando têm um sítio a que chamar casa.

Isto é Lisboa, não é Rabat, mas, em certa medida, a rua onde vivia a mãe de Helena, que esta agora chora por entre os solavancos próprios de quem não sabe como lidar com a perda, é a representação da alienação causada pela dor.

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A protagonista, que trabalha em cinema, na ficção, vê-se a braços com uma realidade da qual quer escapar a todo o custo e, pelo caminho, acaba por criar um ainda maior abismo entre si e o seu mundo mais próximo, mais íntimo.

“Cidade Rabat” é descrita como uma comédia melancólica, mas pelo filme perpassa muito mais a melancolia do que o riso, apesar de, aos poucos, Susana Nobre desenhar para Helena um percurso de cura e esperança através das descobertas descompassadas de Helena, adulta, mas perdida como uma adolescente.

Helena movimenta-se por entre outros deslocados, homens e mulheres em aparência acantonados, mas que encontram beleza e vontade de viver nas pequenas coisas que os unem, naquele bailarico num pátio perdido na Reboleira, na íntima colaboração enquanto comunidade, no desejo de integração sem nunca perder a identidade, as raízes.

Quando encontra a mãe pela última vez, por entre memórias rasgadas sem qualquer arrependimento, Helena não sabe ainda o significado que ganhará o nome de rua que dá título ao filme, mas mais tarde perceberá que o sítio onde antes se sentia acolhida e aconchegada já não lhe traz conforto.

A perda da infância tira-lhe o chão e as referências familiares que sempre ali estiveram e, de repente, o que era familiar torna-se tão distante e estranho como a cidade marroquina que nunca visitou.

Se Helena se desfoca da família, da filha, do trabalho, é porque precisa de se perder para voltar a encontrar-se, mesmo que nunca venha a fazê-lo. Na realidade, o caminho é sempre mais importante que o destino, desde que isso represente um ganho de claridade e verdade.

É, pois, admirável que Susana Nobre fale muito mais nas entrelinhas do que através da sua protagonista que, no fundo, está muito mais ocupada a viver do que a ter de explicar aos espetadores o que significam as suas ações desconexas e com as quais nem sempre se conseguirá estabelecer uma ligação imediata.

“Cidade Rabat” é um filme que ganha significados novos de cada vez que se pensa sobre ele, mesmo que, no imediato, esses não sejam óbvios ou gratificantes. Talvez por isso seja tão surpreendente que a sua aparente discrição possa esconder a céu aberto um sem número de perspetivas diferentes.

Por entre as burocracias modernas que envolvem a perda da mãe, Helena perde-se nas minudências, fala fora de tempo, e Susana Nobre aproveita e deleita-se grandemente no perfil altamente filmável de Raquel Castro, nesta que é a sua estreia no grande ecrã.

Castro personifica na perfeição a quantidade certa de alheamento e destacamento emocional próprio da perda, por entre uma belíssima e igualmente melancólica fotografia que a envolve em particular nos momentos de reflexão e perceção do que, na realidade, a atinge a cada instante.

“Cidade Rabat” é muito mais do que aparenta e é preciso tempo para o apreciar devidamente, o que não deixa de ser um risco, como aliás sempre parece ser quando hodiernamente se pede a alguém que observe e sinta um filme, ao invés de esperar que um arraial de distrações irrompam pelo ecrã para despertar o espetador de tudo aquilo a que nunca se predispôs a questionar.

“Cidade Rabat” é para ver, sentir e extirpar os segredos todos, e, neste momento, isso não poderia ser mais bem-vindo.

Raquel Castro em "Cidade Rabat", de Susana Nobre ©Paulo Menezes
“Cidade Rabat”, de Susana Nobre – Somos todos aliens
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