“É ainda frágil a consistência da cinematografia queer portuguesa, no sentido de uma indústria paralela e independente, quer em termos de produção, quer de distribuição em sala e DVD. É, de igual modo, difícil falar de uma coerência estética e narrativa transversal ao cinema que aborda temáticas ligadas à homossexualidade e à transexualidade em Portugal. Tal não é de estranhar, se entendermos este género cinematográfico como reflexo e consequência de um movimento político e social ligado às comunidades LGBT que procuram, assim, fazer a apologia da sua sexualidade e dar a conhecer as suas vivências, dinâmicas e problemáticas, através de um objeto cultural de maior visibilidade – como o é o cinema.”
Cinema e Cultura Queer, António Fernando Cascais (2014:96)
Cinema e Cultura Queer. Queer Lisboa – Festival Internacional de Cinema Queer é uma obra que celebra a 18º edição do Queer Lisboa, o único festival de cinema nacional com o propósito específico de exibir filmes de temática gay, lésbica, bissexual, transgénero, transsexual, intersexo e de outras sexualidades e identidades não-normativas, num género cunhado internacionalmente como “Cinema Queer”.
Assinalando a sua maioridade, o festival de cinema Queer coloca-se perante um exercício de auto-reflexividade sobre o percurso da sua história no qual podemos encontrar uma súmula do vasto repertório de textos anteriormente publicados que contextualizam o vasto repertório de filmes exibidos e realizadores representados no Festival que teve a sua primeira edição em 1997.
António Fernando Casacais, especialista em estudos de género e sexualidade, autor do livro Indisciplinar a teoria. Estudos gays, lésbicos e queer (Fenda, 2004), conta-nos no prefácio do livro que esta é uma obra indispensável a quaisquer estudos no cinema português, que não apenas pela cinematografia queer que nele se insere, mas pela inexistência de qualquer outro trabalho com idêntico propósito e amplitude em Portugal. Uma obra que, fazendo uma análise interdisciplinar e multidisciplinar desta expressão cinematográfica no país, designadamente pelos estudos de género, estudos gay, lésbico e queer, os estudos de cinema e filmologia, os estudos culturais, oferece um conhecimento exaustivo e minucioso da já considerável cinematografia queer portuguesa.
Organizado em VI capítulos principais: Cinema e Cultura Queer Internacional; Cinema e Cultura Queer Nacional; Cinematografia Gay Portuguesa dos Anos 1970; Cultura Queer no Queer Lisboa; Os filmes do Queer Lisboa e John Waters: 50 anos de Cinema, a 18ª edição do festival mostra dedicar-se à divulgação do cinema queer português na cena nacional e internacional. Exemplo disso é a sua edição bilingue, em português e inglês, que nos divulga as origens da cinematografia gay portuguesa nos anos subsequentes a 1974 pela ousadia das curtas e longas-mertragens criadas por João Paulo Ferreira e Óscar Alves.
Contudo, apesar do ambiente de crescente liberalização dos comportamentos em relação ao corpo e à sexualidade que se assiste nesta década, o cinema Queer teria de esperar quase duas décadas para começar a representar personagens gay, lésbicas e transgénero no cinema comercial de grande público e o início do novo milénio para a entrada do cinema português nos circuitos dos festivais gays e lésbicos internacionais e na rede de distribuição em DVD.
Fruto da transformação cultural e social encetada pelos movimentos sociais LGBT no país na década de 1990, do condicionamento de apoios estatais para a sua produção, o cinema queer enquanto afirmação sexual numa lógica de não hegemonia heterossexual e desconstrução de imagens estereotipadas de pessoas gays, lésbicas e trans, mostrara aos poucos e poucos acompanhar os paradigmas internacionais que marcam o que viria a ser a cinematografia LGBT.
Percebemos que entre os filmes criados por João Paulo Ferreira e Óscar Alves entre 1975-78 e recuperados no Queer Lisboa 11 – Aventuras e Desventuras de Julieta Pipi, ou o processo intrínseco global kafkiano de uma vedeta não analisada por Freud (1978), Charme Indiscreto de Epifânea Sacadura (1975), Good-Bye, Chicago (1978) e Solidão Povoada (1976) – até ao reconhecimento da cinematografia portuguesa em festivais gays e lésbicos internacionais (o filme Fantasma (2000, 90’) de João Pedro Rodrigues) seria necessária a revisão da homossexualidade como doença e desenvolvimento de uma consciência crítica quanto aos processos de construção da identidade de género e sexual que demorariam mais de três décadas.
Um aspeto social e histórico importante para afirmação do cinema Queer no país e lá fora deveu-se, sobretudo, às novas preocupações com as questões da memória trazidas com a epidemia da Sida e o repensar o papel do corpo na arte cinematográfica. Neste aspeto, a leitura de O vírus-cinema: cinema queer e VIH/sida, organizado por António Fernando Cascais e João Ferreira, poderá ser uma leitura esclarecedora sobre os desafios que a epidemia trouxe para o cinema.
“Durante muito tempo, a dispersão temporal e espacial das comunidades gay, em resultado da perseguição e da discriminação, que o mesmo é dizer, da invisibilidade forçada, do ensimesmamento em guetos ou da clandestinidade, e a consequente ausência de expressão pública perdurável, fizeram com que a história e a cultura das comunidades LGBT sejam uma história e uma cultura de hiatos e de interrupções, de ignorâncias, de enviesamentos e de elisões e de mentiras.”
António Fernando Cascais (2017:180)
Seguem alguns dos filmes portugueses destacados na cinematografia Queer portuguesa que fizeram parte do catálogo de filmes do festival:












Publicado em 2014, esta obra não contemplaria a grande conquista que representaria a realização do festival queer na cidade do Porto. O Queer Lisboa (22 a 30 de setembro) e Queer Porto (10 a 14 de outubro), hoje nas suas 27ª e 9ª edições, mostram ser decisivos para a construção de uma estética cinematográfica queer no país, promovendo o cinema português além-fronteiras.
Artigo publicado originalmente no site leiturasqueer.wordpress.com