O filme de monstros sempre foi um veículo do medo social. Uma forma de exposição das fantasmáticas da guerra e do terror. Tome-se o exemplo da longuíssima série fílmica japonesa Gojira (32 filmes), iniciada por Ishiro Honda, do qual muito do cinema americano do género Monster Movie é tributário, tal como o é este “Cloverfield”, de Matt Reeves. Mas, se em Gojira/Godzilla, o fantasma é o mal nuclear, em “Cloverfield” ele é o terror em si mesmo: o monstro nunca antes visto, o evento extraordinário e súbito, o ataque não objetivamente justificado, não vindo de um inimigo conhecido, mas de um corpo estranho e horripilante, criador do ato atacante absolutamente destruidor.
É um filme do estar em medo, da voracidade da fuga, da vertigem da escapatória impossível, da perseguição avassaladora. É também, como tal, um registo da paranoia, da cristalização dos modos materiais do susto e da palpitação urbana contemporânea – da mesma forma que “10 Cloverfield Lane” é o da palpitação não-urbana contemporânea – enquanto vertida na expansão da massa aglomeradora do capitalismo consumista: os cidadãos de uma micro- metrópole (Manhattan), em fuga através dos próprios corredores da sua riqueza e opulência, nas ruas das grandes marcas internacionais de moda e telecomunicações, e em direção da saída que nunca se vê – na sua translação, em medo, para a incógnita civilizacional do estado de guerra-terror. Não é, pois, por acaso que o filme se passa em Manhattan, figura-identidade sociocultural da supremacia capitalista e do valor-lucro da sociedade de consumo, massificada e de alcance global. Depressa fica claro que, ao contrário do valor-preço – que, em Manhattan, sempre sobe – o valor-vida depressa cai, num vetor descendente em direção da obliteração.
A lógica do ataque ao símbolo cultural e à(s) sua(s) figura(s) representativas faz ecoar as memórias dos ataques de 11 de setembro de 2001: é tanto o que se ataca como representação/metáfora, como é o ato de aniquilar as pessoas que se delas se refletem que efetiva a ideia da destruição, enquanto finalidade total, de um estado de coisas e dos seu(s) modo(s) de vida. Quando se ataca um modo de vida e o valor dos instrumentos que o possibilitam, esvazia-se o sentido de alma da estar-no-mundo da população. Sem comunicações móveis, não há contacto e possibilidade de salvação: Ben Hawkins (Michael Stahl-David) tem que entrar numa loja high end de utensílios e eletrodomésticos para roubar uma bateria de telemóvel para poder comunicar com Beth (Odette Yustman), ato que o equaliza com os que, no mesmo momento, pilham o estabelecimentos. O verniz estalado da civilização-capital e da capital-civilização torna-se por demais evidente. As longas filas de pessoas em fuga, a nuvem de pó e detritos de edifícios caídos, que enegrecem o ecrã e ofuscam totalmente a visão, os olhares perdidos e as vozes/gritos entrecortados mais ainda lembram o dia negro dos ataques a Nova Iorque, também aproximando este “Cloverfield” de “A Guerra dos Mundos”, de Steven Spielberg, ainda que neste, a fuga da urbanidade seja vista pelos olhos da mais realista classe trabalhadora e não pelos da mais impreparada classe tecnocrática.
Na fuga da tecnocracia, a tecnologia é instrumental: a câmara de vídeo com que Hud (T. J. Miller) filma as incidências da festa de despedida de Ben, de partida para trabalhar no Japão – referência outra à cinematografia criadora de Gojira/Godzilla – passa a registar a fuga do grupo de quatro: ele próprio, Ben, Lilly (Jessica Lucas) e Marlena (Lizzy Caplan), ao qual se junta mais tarde, por salvamento, Beth. A partir do dispositivo-câmara de vídeo, Matt Reeves constrói o meta-filme, o filme a ser feito como o filme em criação, montado na própria câmara, pelo ato de filmar/não filmar do operador de câmara insuspeito.
Este meta-filme comenta sobre o ato técnico e a função estética do filmar: Hud só muito depressa tem que aprender a operar tecnicamente a camcorder; do ponto de vista da linguagem audiovisual, ele não conhece nenhuma, antes pelo contrário, ele inventa as (suas) escalas de plano à medida que a sua prática melhora e em função das condições em que pode filmar; mais ainda, o ator/operador de câmara não filmou todos os planos que a ele ficcionalmente se atribuem, tendo parte dessa função caído sobre um real operador de câmara. Como tal, e sendo este “Cloverfield” um filme sobre o ato de filmar e a percepção do que é filmar-se uma realidade em ocorrência, ele é construtor da própria ficção do que é o cinema, através da destruição do pressuposto da sua transparência e fluidez narrativa: o jump-cut é simultaneamente efeito estético cine-linguístico dos criadores da ficção e inépcia/necessidade prática do operador-ficção dentro da ficção criada. Em ambas as posições, há o objetivo de querer mostrar o filme, glorificar o filme e o ato de fazer o filme, as suas imagens e o seu fluxo narrativo, por mais caótico que ele assim seja. Uma aproximação absolutamente godardiana ao filme de género. Apesar dos cortes, a tensão e o sufoco que permeiam “Cloverfield”, arquitetam-no como um plano em sequência, na medida do seu constante ritmo tensivo (mesmo na cena calma que se passa na estação de metro, já que há aí toda uma necessidade de respirar para reganhar fôlego) que o torna num filme da voracidade e da (necessidade) da rapidez, dada pela câmara- cinema-olho que documenta/cria uma imagética de horror e barbárie.
Essa é a força maior de “Cloverfield”: a de ser um filme-exercício e um exercício de estilo, construtor de uma percepção do medo – enquanto vivido sequencialmente e ritmicamente – num filme de monstros pós-moderno.