Come and See: o melhor filme anti-guerra de todos os tempos

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Depois desta experiência que foi Come and See, associei o título a uma espécie de desafio: vem e vê, se tiveres coragem. Ao ler a secção de trívia do IMDb (uma das coisas que gosto de fazer após ver um filme), fiquei agradado por o título ser mais que isso. É uma referência a uma passagem bíblica do Novo Testamento, em concreto no capítulo 6 do livro da revelação (também conhecido como apocalipse de S. João ou revelação de S. João) e nessa referência está o seguinte: “E quando ele abriu o quarto selo, eu ouvi a voz da quarta besta dizer ‘vem e vê’. Eu olhei e vi um cavalo pálido, e o seu nome era Morte, e o Inferno seguia-o (…)”.

O jovem Florya procura uma arma de modo a juntar-se à resistência bielorrussa contra a invasão nazi. Creio que todos os grandes filmes conseguem ser explicados numa frase curta e de fácil entendimento, como é o caso. “Come and See” pode ser assim resumido, e o que à primeira vista seria mais um filme de guerra, tornou-se numa das experiências mais intensas e espiritualmente exaustivas que já tive ao ver um filme.

As performances dos dois atores principais (Aleksey Kravchenko interpreta Florya e Olga Mironova faz o papel de Glasha) são, no mínimo, brilhantes. O realizador Elem Klimov disse, numa entrevista em 1986, que optou por usar atores não profissionais, algo que me deixou bastante surpreendido, dadas as performances dos dois atores já mencionados – considero-as tão boas que senti a necessidade de reiterar o mesmo ponto. Florya parece começar o filme com 12 anos e acabar com 18, apesar do espaço temporal não ser mais que algumas semanas ou meses, e com Glasha acontece o mesmo.

Uma das coisas que me chamou a atenção é que não há uma busca da perfeição técnica (apesar da fotografia ser belíssima, com paisagens fantásticas, próprias de países soviéticos e o som é muito bem trabalhado e usado inteligentemente). Com isto quero dizer que o filme não procura atingir a perfeição visual, mas sim alcançar uma experiência orgânica, espiritual até – pretende que haja uma emersão do espectador, não apenas pelas imagens propriamente vistas no ecrã, que muitas vezes são filmadas de modo a “enganar”, mas sim uma emersão sentimental.

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Acompanhamos as personagens (em especial Florya, pois vemos sempre o que ele vê, mas nem sempre ele vê o que nós vemos, e há uma cena em específico onde isto se verifica, mas quero evitar spoilers, porque gostaria que o filme fosse tão impactante para o leitor como foi para mim). Pode-se dizer que, de tão real que o filme é, quase se trata de um documentário (e o ator principal, Aleksey Kravchenko, contou numa entrevista que munições reais foram usadas nas rodagens, o que em primeiro lugar, é uma loucura, e em segundo reforça ainda mais esta ideia que o obra quase parece um documentário, tal o seu realismo).

A maneira como os temas são abordados é o que me faz ter “Come and See” em tão alta estima. O horror da violação, pelo menos de todos os filmes ou séries que vi, nunca foi tão bem retratado. Não que eu saiba, ou consiga imaginar na totalidade o que será passar por tal experiência – mas nunca, nunca a representação dessa atrocidade, no pequeno ou grande ecrã, me atingiu do modo que esta obra o fez. Nem sequer há diálogo na cena a que me refiro (de novo, tento evitar spoilers). Essa cena é apresentada de um modo que leva o espectador a juntar os pontos, não aparece tudo “mastigado” e “pronto a comer”, o que é recorrente ao longo da obra e que aprecio bastante – um cinema que exige a participação ativa de quem o vê. Acredito que deste modo a sétima arte explora ao máximo as suas potencialidades.

Esta película faz o que muito poucas, ou talvez nenhuma tenha feito, falando na minha experiência pessoal: não glorificar a guerra. Várias obras que retratam esse ambiente violento seguem uma fórmula standard: existe um bravo e corajoso soldado, que passa por enormes dificuldades e é testado, mas no fim derrota as hordas inimigas com mérito e valentia. Tudo acaba em triunfo. Aqui não é possível dizer o mesmo. Sinto-me seguro ao dizer que a obra de Elem Klimov me tocou de tal modo que me conseguiu mudar, e só me é possível dizer isso de uma mão cheia de filmes.

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Experimentei sensações que nunca tinha sentido ao ver um filme, dada a crueza das imagens. Até hoje nada do que vi se equipara à experiência de “Come and See. Este é um daqueles filmes que não é para ser visto várias vezes em curtos espaços de tempo, dado o esforço emocional que as imagens acarretam no espectador, mas é antes um clássico, que fica gravado no nosso cérebro, que nos deixa a pensar e refletir durante muito tempo, tanto no filme como um todo, como em cenas específicas ou simplesmente e também em questões morais e filosóficas.

Gostava de ter usado outras imagens a acompanhar este artigo, mas quis escrever sem spoilers, e o mesmo acontece com as imagens que acompanham o texto. Acho que quem já viu o filme, ou quem o for ver, no final vai saber as duas imagens que eu queria ter aqui colocado, uma respetiva a cada um dos protagonistas. E, tal como eu, vai ficar com elas a ressurgirem nos seus pensamentos durante algum tempo.

Para quem quiser ver (ou rever) o filme, ele está disponível no YouTube em duas versões (com legendas em inglês), uma que creio ser original, ou muito parecida com essa, e outra já restaurada e com mais qualidade de imagem.

Versão restaurada:

 

Versão original aqui.

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