No ano passado decorreu mais um Festival de Cinema de Cannes, cheio de glamour e gente bonita, mas também repleto de críticas à sociedade e momentos (e decisões) de motivo para reflexão. Cannes voltou a gerar discussão porque a Netflix decidiu não exibir as suas produções no festival. A organização terá banido os seus filmes do concurso (porque não houve uma exibição em cinemas locais) já o ano passado, e a plataforma decidiu retirar-se completamente.
É mais ou menos consensual que é tempo de saber lidar com as novas formas de cinema. Nuno Gonçalves, diretor da distribuidora Cinemundo, lança uma reflexão quanto a esta problemática: “estou convencido de que um serviço como a Netflix não vai matar nunca a vida dos filmes nas salas de cinema”. Com efeito, Steven Spielberg, um homem forte da indústria cinematográfica e dos mais aclamados realizadores da atualidade, veio a público recentemente dizer que “os projetos da Netflix não deveriam contar para os Óscares” e, neste sentido, o produtor e realizador português Nuno Bernardo defende o seguinte: “a Netflix é cada vez mais uma plataforma para exibição de produtos próprios e cada vez menos irá adquirir catálogos de séries e filmes existentes”.
A questão que se afigura, neste prima, é a seguinte: será que os filmes produzidos por plataformas como a Netflix têm menor valor artístico do que aqueles que vemos nas salas de cinema? Importa frisar que o risco para uma produtora em exibir um filme sobre o qual não sabe se terá retorno é gigantesco. Ou seja, é necessário que o filme obtenha uma receita superior ao investimento necessário para a sua produção, e isso depende sempre do público: isto é, se o público tem uma reacção imediata negativa, é natural que fiquem de pé atrás. Plataformas como a Netflix ou a Amazon não têm esse problema: o seu investimento é recuperado através de subscrições e outros revenues monetários, e por isso podem investir na exibição de todo o género de filmes.
É inegável que assistirmos a um filme numa sala de cinema permite-nos ter uma percepção da acção completamente distinta daquela que temos em casa – por muito dotada que seja a nossa televisão. Existe uma atmosfera, um clima, que nos permite absorver muito mais o filme, a sua narrativa, e é natural que a própria qualidade e projeção de som e imagem seja significativamente superior. Já para não falar que muito realizadores e argumentistas pensam na experiência da sala de cinema como parte da película. Christopher Nolan, por exemplo, ao utilizar câmaras IMAX em “Dunkirk” (2017), cria uma total imersão na acção a que assistimos. E de certeza que “Um Lugar Silencioso” (2018) não terá o mesmo impacto quando estamos a ver em casa, sem o pesado silêncio do anfiteatro onde a magia acontece.
As plataformas de streaming estão a dar-nos uma liberdade de escolha e um maior controlo na forma como consumimos cinema – e também televisão. Além disso, estão a apostar em produções que tanto têm de obsoletas, como de altamente criativas e interessantes. Temos de abrir os braços e deixar a evolução do cinema fluir, tomar o seu caminho: sempre, claro está, contribuindo com toda a nossa magia do espectador individual, que, todos juntos, constituindo o tão sublime público das últimas décadas, fará da sétima arte um mar infinito de sensações e conquistas.