“Crimes do Futuro” – Os Corpos Cortados

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Uma boca que desfaz plástico. Parte-o e liquidifica-o. A espuma branca é substância e visco que acidifica e macera o duro. Poderia ser a mesma viscosidade letal do outro ser alienígena de um outro filme de ficção científica e de horror do corpo (estranho), mas não o é. É antes a capacidade transhumana de uma criança insuspeita, Brecken Dotrice (Sozos Sotiris), a de cortar, misturar e digerir o veneno que o próprio mundo ejeta. Mais profundamente irónico não poderia ser: o resto da produção e consumo capitalista – quase impossível de comensurar, quanto mais de fazer desaparecer – é comido, ou melhor dissolvido, pelo próprio corpo que envenena.

Nesse futuro não muito longínquo, é sobretudo o (des)capitalismo do resto, da ruína, que parece ter ficado. Tudo é deixado, usado e a enferrujar enquanto um veneno continuado. O navio caído sobre si, e que está por detrás de Brecken – quando ele próprio procura restos – é uma remanescência, obviamente obsoleta, de um capitalismo exangue e que se subtraiu das suas excrescências finais: a sujidade, o plástico, a ferrugem, o ferro retorcido da (des)economia que aparentemente o destruiu. O futuro é de um novo mundo e de um trans-mundo, feito dessa ruína: tudo é mais vazio, manchado e destruído. Não existe o digital, ainda se compra e vende, ainda há “corporações”, mas o bem principal é outro, a commodity é outra: o corpo e o seu novo regime operativo, o (seu) corte. E, para alguns, acoplado a esse regime, está um outro, o da dor. Quando acorda, Saul Tenser (Viggo Mortensen) já está em dor, o seu corpo transforma-se literalmente pela dor e da dor cria a mutação, o novo órgão, o trans-orgão. A máquina já não pisca e efetiva números e códigos binários, é orgânica e analógica, obsolescência que se faz nova forma de simbiose negativa entre o humano e o maquinal. Ironia outra: nesse mundo – não longínquo, se repita – é a dor que foi feita (aparentemente) desaparecer. Mas a Tenser, todo o seu corpo dói. Ele que é evolução sobre o humano-base, não deixa de ser quem mais sofre com a capacidade de ser um outro, o trans-homem. E se esse futuro é um de uma pós-economia dos pós-corpos e um que o novo órgão é obrigatoriamente registável, então o valor de uso do corpo é um de mero espetáculo e um seu “comercializar falso” pela lógica da imagem e do transmutar da estranheza. Se a cirurgia é ato performático, a ir tão longe quanto a remoção espetacular de órgãos para uma audiência que deseja o corpo como essa operação imagética, então a performatividade do corporal é tão só uma aparente liberdade que urge controlar, restringir, registar, para dela fazer uma outra mercadoria, um valor de pós-mercado para essa pós-economia de um futuro incerto.

Só que esses corpos cortados são não só impossíveis de controlar como o ato de cortar tem outra função, a da substituição e transmutação libidinal: diz Timlin (Kristen Stewart) que “a cirurgia é o novo sexo”, o que efetiva uma reconfiguração dos poderes do controlo biopolítico. Sem sexualidade reprodutiva, para onde segue a evolução numérica do humano a não ser para a inexorável diminuição, ainda que (e)numerada por um registo controlador dessa mesma impossibilidade de controlar, e quando só se virá a contar a sua constante decrescência? Assim, e se o filme fala sobre o pós- económico e o pós-corporal (na sua formulação trans-corporal) onde a imagem e a performance são as ações mais materializadoras de uma ideia de futuro como vazio do que ficou totalmente gasto: o próprio lugar de vivência e de existência.

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Num mundo já transformado, são as crianças que não têm lugar, já que são deixadas para serem espetacularmente autopsiadas, terem as suas entranhas removidas e cirurgicamente substituídas – diga-se transmutadas da sua transmutação original – para cumprimento do jogo das políticas impossíveis, pois entres os progressistas evolucionistas e os conservadores corporais, pouco há mais a propor do que caminhos igualmente dolorosos em direção da imagem da imagem. E essas são as gravações em vídeo das performances que ficarão para a posteridade de um futuro esquecedor de um passado futurado no seu próprio esquecimento.

Se dos restos e das ruínas do capitalismo se deu lugar ao valor do corpo como imagem pós-económica (para nele fazer crescer novos órgãos, para o cortar e tornar feio, e não para o sexualizar e a partir dele fazer gerar outros corpos), de modo a ficar somente a imagem dessa mesma imagem – o vídeo performativo – então que futuro mais se poderá realmente esperar, na sua neutralidade da espera de um fim contado? Todas as tensões entre as visões que se digladiam no filme confluem para a figura de Tenser – nome tenso já – ele que, num estranho thriller muito seu, é o artista vanguardista que “vende” partes orgânicas e imagens do corte do seu corpo para um público que só o vê como puro simulacro do que já não há, o sentido prático do económico, já que as máquinas biotecnológicas (as)seguram só a falência e a decadência dos corpos que terão que se transmutar para sobreviverem um pouco mais, comer o plástico e os resíduos tóxicos sobre a forma de uma “barra de chocolate” (forma de relembrar o ato de comer um chocolate que era comprado para o prazer de o consumir), até que fiquem só as imagens do que outrora foi o humano e o económico do que ele havia construído.

A aparente morte ou a aparente cura de Tenser que Caprice (Léa Seydoux) filma é dúbia, mas é a última coisa que fica: uma imagem, tão só e só ela. Por comentário cáustico e negativo que seja, este filme de David Cronenberg parece ser mais sobre os crimes de hoje, infligidos ao planeta pelo seu uso e abuso, sobre a extinção dos corpos outros e dos recursos económicos que são aparentemente de todos. Distópico e caucionário, por antecipação. Que esse futuro próximo não esteja realmente já ao virar da esquina e que todos nós não acabemos a comer plástico que não custou nada.

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