Se “Richard Jewell” é a transição madura para a interioridade fílmica através de uma intensificação do banal, “Cry Macho – A Redenção” é ainda uma intensificação desse mesmo movimento, porém de uma forma ainda mais despojada. O maior sinal deste despojamento reside precisamente no quanto o cineasta frustra as expectativas daqueles que esperariam mais uma performance cinematográfica onde o realizador, tal como um ginasta, depois de escolher o grau de dificuldade do seu exercício, teria de corresponder com um filme à medida de tanta mesa de júri. Clint Eastwood, perante tal certeza – a de ver o seu filme julgado pelas normas canónicas do cinema – torna-se o verdadeiro cowboy insolente, cuja única arma que o acompanha de perto é um galo de luta de um jovem mexicano, que a personagem de Eastwood ficou incumbida de levar de volta até ao pai.
Quando esperávamos que a sua velhice falasse do alto da sua sabedoria, ela fala-nos, mais profundamente e desde um lugar ainda mais elevado: do alto da sua humildade. Depois de cavalgar como actor o western enquanto género cinematográfico, de o ter reinterpretado como realizador e de ter mostrado o seu brilhantismo na arte de contar histórias, preservando sempre a presença de uma essência humana que neles se comunica, Eastwood, já saciado, baixa o chapéu e tira uma sesta. Mas é a cena do seu acordar a mais brilhante e significativa de todas: o galo, com peito feito e crista arrebitada, canta alto e bom som. Eastwood olha para o galo, para a sua postura altiva, e talvez lhe viesse à memória tanto galo louco deste mundo, que pensa que o dia nasce pelo gesto do seu canto, e dirige-lhe apenas um: “Jerk”. Esse galo, para o qual Eastwood fala, tanto pode ser o seu alter-ego, relembrando os estereótipos de masculinidade que a sua imagem tanto ajudou a simbolizar, e que a inocência do jovem mexicano pretende mimetizar; como podem ser todos os que de alguma forma se pavoneiam em torno de uma obra cinematográfica: sejam eles realizadores, críticos ou cinéfilos; como pode ser qualquer pessoa que tem medo de dialogar e de se confrontar com o seu galo interior, com temor de ver nele a verdade da fraude que o seu amor-próprio tão carinhosamente foi construindo ao longo dos anos.
É este despojamento, que ora demonstra um máximo de insolência como de absoluta sabedoria e genialidade, que torna este filme tão rico e tão estranhamente desconcertante. Tentar buscar nele imperfeições para o julgar possui já um ligeiro cantar de galo. O filme está repleto de imperfeições e todas elas fazem parte da sua candura: se, em certo momento, o olhar da actriz mexicana se dirige para a câmara, Eastwood corta – em forma de remendo desajeitado – o plano no momento em que esse olhar se vai lançar na nossa direcção; quando está a aprender a amassar o pão, Eastwood levanta a cabeça e com um sorriso descontraído lança o olhar na direcção de alguém fora de cena para quem dirige um comentário; a economia narrativa com que consegue sintetizar o passado trágico da sua personagem parece um aligeiramento, quando na verdade é o suficiente para dar realidade a um cowboy frágil; o jovem actor mexicano Eduardo Minett, com uma performance vincadamente tosca parece adequar-se perfeitamente a esse tom desprendido que o realizador dá ao seu filme. Eduardo Minett, na verdade, é como o cavalo selvagem que acaba de ser retirado da natureza, e só lhe resta o trabalho sobre si mesmo e o milagre humano da aprendizagem. É esta a palavra que resume o filme, aquilo que se aprende durante a jornada de uma vida: aprender com o gesto generoso da mulher mexicana que cuida sem pedir nada em troca; aprender com a valentia de um simples galo que consegue enfrentar e amedrontar o mais másculo dos vilões; aprender, algures e em algum momento, a falar através de gestos; ou aprender a ver, na mão da criança sobreposta na mão envelhecida de Eastwood, o encontro terno entre duas gerações cujo movimento inexorável do tempo acabará por distanciar. E nada consegue apagar o afecto tão puro deste gesto, nem mesmo o sentimentalismo vincado da melodia da música de acompanhamento.
Este é um filme de um cineasta que advoga o direito à velhice, à sua fragilidade e a todas as imperfeições que todo o gesto criativo pretende esconder, mas que apenas uma sabedoria humilde e despretensiosa tem a coragem de expor. Claro está que, do outro lado do filme, estará, como sempre, a máquina que vê todo o filme grosso modo como acto performativo, que o avaliará segundo (as velhas) abstracções estilísticas, entre formas e conteúdos, e, ironicamente, o filme-baixa-cristas continuará a fazer levantar muitas cristas. Parece-me que feliz é toda a obra que faz transparecer, antes de qualquer exercício estilístico, uma conexão real e honesta com a tessitura emocional que perpassa todo o ser humano – ou o que nela ainda arde por entre tanto excesso de abstracção e pretensiosismo. Por trás das formas escondem-se sempre misteriosos pedaços de realidade, que parecem abrir e desfazer pedaços da forma límpida do filme para fazer brilhar certas luzes mais essenciais. Se na velhice existe uma nova infância, este Eastwood trapalhão ainda consegue fascinar, mesmo quando pinta os seus desenhos fora dos limites das figuras…