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«Detroit» – “Misdirection” é um problema para este Detroit de 2017

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O termo misdirection é anglo saxónico para indicar o que os ilusionistas realizam para a sua magia – é a ‘distração provocada’. Este termo aplica-se a este filme de Kathryn Bigelow porquanto pretende tratar um episódio muito específico da história americana mas os métodos utilizados, desviam-nos o olhar do que era importante fixar – uma cultura de abuso sobre o negro americano, muitas vezes, debilitante, fisicamente através da lesão ou da morte e socialmente através do trauma e da desconfiança posterior num meio hostil.

A realizadora norte-americana e Mark Boal na efeméride dos 50 anos do incidente do Motel Algiers (o leitor deve informar-se se desejar saber mais sobre este incidente, visto o conhecimento do mesmo poder afetar a experiência do visionamento do filme) decidiu usar o passado para lançar uma ponte para a discussão sobre o presente da violência exercida sobre o negro americano, particularmente a violência policial.

O filme introduz o início dos riots de Detroit em julho de 67, bem como, em que ponto se encontra a vida dos protagonistas reais. Isto porque vê-se um reenactment do que se passou nesse motel, o mais fielmente possível, usando os testemunhos dos que sobreviveram a esse incidente e ainda podem apresentar o seu depoimento.Esta é uma excelente premissa para um filme mas não para aquele que a realizadora vencedora de um óscar nos apresenta.

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Há um desfasamento entre as escolhas de realização, as quais induzem uma expectativa substancialmente diferente. Um exemplo dessas escolhas é o uso da câmara à mão, muito reminiscente do repórter de guerra do Vietname para relatar a inconstância daquela vivência, para aproximar a película do found footage e da realidade marcial que se vivia naquela cidade. Para além disso, as imagens televisivas preparam um ambiente de biopic, para uma imersão no lugar e naquele ambiente de completa inversão de valores e caos social. No entanto, estas opções poderiam ser relevantes para auxiliar a contextualizar aquele evento histórico para as gerações que não imaginam o que é ter o Exército, a Guarda Nacional e a Polícia a patrulhar as ruas, numa lei marcial de recolher obrigatório após as 21 horas e com atiradores furtivos nas janelas dos edifícios prontos para assassinar agentes de autoridade.

Infelizmente, não é.

Isto porque há uma caracterização de uma força policial de 3 indivíduos, os quais estão envolvidos no incidente do Motel Algiers de uma forma tão poderosa e visceralmente negativa que chegamos a duvidar que sejam indivíduos normais que condicionam as suas ações, devido à sua visão racista do mundo. Mais frequentemente são revelados como sociopatas com pouco respeito pela vida humana e sem sentimento de remorso. Poderá ser o caso, porém a direção que a caracterização toma diverge do típico comportamento policial, na medida em que no enredo se encontram outros comportamentos policiais, o que destrói a noção corporativa enraízada de um racismo profissional que grassava e que hoje em dia ainda colhe os seus frutos.

Mas, falemos de cinema. Detroit tem excelentes interpretações de John Boyega, Will Poulter, Anthony Macky, Algee Smith e Hannah Murray. A cinematografia, especialmente os movimentos de câmara rápidos, é um dos aspetos a realçar pela sua instabilidade que provoca uma desorientação no espetador, embora por vezes quando a câmara se imobiliza nos incidentes do motel, torna-se espetadora, permitindo uma linguagem do tratamento violento do corpo, reminiscente dos campos de concentração, o que mais uma vez nos coloca, não perante polícias, mas perante indivíduos cruéis e pouco humanizados. Há uma dúvida importante, impossível de verificar, a saber: quem tem o conhecimento profundo dos acontecimentos do Motel Algiers conseguirá ver este como algo mais que uma reportagem em tela grande? Esta poderá ser mais uma boa razão para ir ver o filme, porque deve-se ver este filme, pelo peso histórico e atual do seu conteúdo.

Detroit é um filme com ideias e sobre ideais, mas por vezes a abundância e a profunda relevância de ambos, tornam óbvias opções e caminhos que depois se revelam curtos para uma longa viagem cinematográfica que não consegue atingir o seu destino.

4RealizaçãoKathryn Bigelow
ArgumentoMark Boal
ElencoJohn BoyegaAnthony MackieAlgee Smith
EUA/2016 – Drama
Sinopse
: No verão de 1967 os Estados Unidos da América foram assolados por uma crescente instabilidade política e social: a escalada do envolvimento militar do país na guerra do Vietname e décadas de injustiça racial e repressão. Os epicentros de todo este descontentamento e fúria latente foram as cidades mais importantes do país, com as suas discriminações persistentes, disparidades raciais no alojamento e na educação e desemprego crescente no seio das comunidades afro-americanas. Duas noites após o início dos motins de Detroit, o relato de um tiroteio nas proximidades de uma zona controlada pela Guarda Nacional fez com que o Departamento de Polícia de Detroit, a Polícia Estadual do Michigan, a Guarda Nacional do Michigan e um segurança privado invadissem e controlassem um anexo do vizinho Motel Algiers. Desrespeitando as regras em termos de procedimentos, vários polícias interrogaram de forma enérgica e perversa hóspedes do motel, levando a cabo um “jogo de morte”, numa tentativa de intimidar e levar alguém, fosse quem fosse, a confessar.

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