Enquanto a competição oficial anda aos trancos e barrancos, fomos em busca dos “tesouros escondidos” de Cannes. Este ano parece que eles estão espalhados pelas margens do festival e não demorou muito tempo para encontrarmos o primeiro. É o caso do francês Dites-lui Que Je L’aime, pequena pérola da atriz e realizadora Romane Bohringer, apresentado discretamente nas Sessões Especiais.
No papel, a premissa pode parecer um tanto convencional: a adaptação de um livro de memórias que trata da perda materna. Mas o que Bohringer faz aqui é verdadeiramente surpreendente e está longe de qualquer fórmula biográfica tradicional. Ao invés de simplesmente ilustrar o passado com imagens do presente, ela embarca numa experimentação híbrida que tensiona os limites entre ficção e documentário, intimidade e performance, memória e invenção. O resultado é um filme que não apenas conta uma história, mas interroga, com ternura e rigor, os modos possíveis de narrar a si mesma.
Bohringer parte do livro de memórias Dites-lui que je l’aime (em inglês Tell Her I Love Her), publicado em 2019 por Clémentine Autain, política francesa e filha da atriz Dominique Laffin, que foi musa de Catherine Breillat no cultuado Tapage Nocturne (1979). O título do livro, e do filme, aliás, foi retirado de um longa de 1977 realizado por Claude Miller, onde Laffin fazia par romântico com Gérard Depardieu.
Mas o gesto de adaptação desse livro vira outra coisa: Bohringer vê ecos de sua própria história no relato de Autain. As duas protagonistas compartilham um ponto em comum: a perda da mãe. Autain tinha apenas 12 anos quando Dominique Laffin morreu, num contexto que levanta a hipótese de suicídio. Bohringer, por sua vez, foi deixada pela mãe com nove meses de vida.
Essa dimensão da má maternidade, que o imaginário cultural costuma empurrar para o campo da caricatura ou do melodrama, aqui ganha contornos mais ambíguos. Não se trata de uma versão intelectualizada de Mommy Dearest, mas de compreender a maternidade falhada dentro de um sistema afetivo precário. O filme entrelaça essas dores sempre evitando o sentimentalismo fácil e propondo uma reflexão madura sobre a ambivalência da maternidade. Aqui, ser mãe não é um papel idealizado, mas um campo atravessado por falhas, ausências e expectativas frustradas. É nesse terreno que o filme constrói sua força.
Para tal efeito, Bohringer coloca Autain a fazer uma versão ficcionalizada de si mesma, enquanto narra a própria história, às vezes até recriando situações de forma performática. Bohringer também aparece no filme como ela mesma, mas também de forma ficcionalizada, à medida que relata a uma amiga, espécie de terapeuta, os traumas de ter sido abandonada pela própria mãe enquanto tenta dar forma ao filme que estamos assistindo. A partir daí, o que se desenha é uma narrativa profundamente sensível sobre a ausência materna, a memória afetiva e a construção da identidade a partir de fragmentos.
No livro de Autain, ela relata com pesar – e não sem certo ressentimento – o papel falho de Laffin como mãe, descrevendo uma infância marcada por negligência e episódios traumáticos. Em uma das passagens mais duras, o filme recria a memória da noite em que ambas foram expulsas de um hotel após um surto de violência da mãe, que, sob efeito do álcool, tentou destruir o bar do local ao ter uma bebida recusada. Tudo diante de Autain, que na época tinha onze anos; uma lembrança que se cristaliza como símbolo de uma infância desamparada. Ao final, ela resume a mãe atriz com uma ironia dolorosa: “ser mãe foi definitivamente o seu pior papel”.
Há também um aspecto lúdico na forma como o filme brinca com a representação. Em uma das sequências mais marcantes, vemos uma série de atrizes, fisicamente parecidas com Autain, fazendo testes para interpretá-la no filme. Cada uma dá sua própria versão da personagem, como se revelasse que não existe uma única verdade, não existe uma só Clémentine. A cena funciona como uma espécie de realidade distorcida, onde o processo de encenação expõe as camadas subjetivas por trás da história real.
Essa multiplicidade de vozes e versões desestabiliza a ideia da verdade biográfica. O filme não busca a fiel representação da vida de alguém, mas mostra justamente como qualquer tentativa de capturar uma vida em cinema está sempre filtrada por memórias, afetos, desejos e lacunas. A própria Bohringer brinca com essa instabilidade, tornando o processo de fazer o filme parte da narrativa, num gesto que assume o cinema como forma de dúvida, não de resposta.
Há ainda uma terceira leitura no filme de Bohringer: a da cinefilia. Dites-lui que je l’aime também é, de certa forma, um filme sobre a memória do cinema. Quando finalmente somos apresentados a Maggy, a mãe de Romane, descobrimos uma jovem de 21 anos apaixonada pela contracultura, que abandona a filha para seguir um jornalista do Libération e mergulhar num submundo de artistas, drogas e sonhos quebrados. Entre essas figuras, estão Wim Wenders e sua parceira na época, Solveig Dommartin, imortalizada na obra clássica de Wenders Asas do Desejo, e que também morreu jovem, de forma trágica. Em uma das cenas finais, Romane encontra uma antiga edição da Cahiers du Cinéma na qual Wenders, editor convidado daquela edição, dedica o editorial à sua mãe: “Para Maguy. Para o filme que poderia ter feito e o roteiro que foi a sua vida.”
É um gesto que ressoa com tudo que vimos até então. Ao cruzar os arquivos da memória pessoal com a memória coletiva do cinema, o filme revisita não apenas o trauma do abandono materno, mas também o desencanto com as imagens de uma geração que se quis livre, mas não sem ter o seu custo. São essas filhas que agora tomam a palavra, tentam refazer os vínculos, e encontram na recriação ficcional uma maneira de transformar a ausência em presença. Ao adotar o artifício como forma, o filme não escapa da verdade: ele se aproxima dela por outro caminho, onde o afeto, a dúvida e a invenção são mais reveladores do que qualquer testemunho direto. Neste gesto, o cinema se torna não só um espelho, mas um terreno fértil para reelaborar o passado e, quem sabe, reinventar a herança da maternidade.

