25 de Abril

DocLisboa 2024: “Fire Supply” é um acidente de carro, mas com final feliz

"Fire Supply", de Lucía Seles "Fire Supply", de Lucía Seles
"Fire Supply", de Lucía Seles

A sala de cinema é um lugar que gosto de estar e frequento com alguma frequência. Foi, talvez, o primeiro local onde gostei de ir sozinha. Os festivais de cinema, especificamente, são, para mim, uma experiência intensificada deste ato de suspender o tempo, de viajar sem sair do lugar, uma experiência que me abstrai do que acontece do lado de fora da sala escura ao mesmo tempo que me faz perceber de forma diferente espaços, pessoas, relações depois de ver um filme.

Está acontecendo agora o Doclisboa, em meio a outros mil compromissos pessoais e profissionais que tenho. Irresponsavelmente, tiro a importância dessas outras atividades para poder estar no cinema vendo tantos filmes quanto possível, porque sei que muitos deles serão oportunidades únicas – e porque este é um dos meus festivais favoritos.

Outro dia, enquanto comia castanhas assadas no pátio da Cinemateca Portuguesa até dar a hora de ver a versão restaurada de “Um é pouco, Dois é bom”, de Odilon Lopez, um senhor sentou-se ao meu lado e puxou conversa. Primeiro sugeriu que eu deixasse a minha bicicleta do lado de dentro da Cinemateca, porque era mais seguro do que do lado de fora, onde eu a tinha deixado. Depois perguntou-me se eu assistiria ao filme brasileiro. Respondi que sim, e perguntei se ele também. “Sim”, respondeu, sem olhar nos meus olhos. Perguntei se ele assistiu à conversa sobre o restauro do filme, porque eu não tinha conseguido. Ele respondeu-me que não, que hoje em dia fala-se demais, pensa-se demais sobre o cinema, e que ele não é dessas coisas. Eu, doutoranda, investigadora do cinema, concordei. Comentei que assistir a um filme deveria ser mais simples, poderia envolver apenas ir ao cinema ao fim do dia, depois do trabalho ou antes de voltar à casa. Ele não respondeu, continuou a olhar para frente e disse que, para ele, o horário era bom e, por isso, estava ali. Disse-me que também iria ver o filme “do mexicano” – uns dois ou três, para conhecer. “Do Paul Leduc?”, perguntei. “Sim”. Falei que queria ver o da Frida Kahlo. Porém, nesse, ele não tinha interesse. Era um senhor particular. Ignorava ou contestava tudo que eu dizia, mesmo quando concordava com ele. Interessava-se pelo cinema. Lamentou ter de escolher entre um filme e outro, por ter sessões em simultâneo. Concordei e acrescentei que eram escolhas difíceis, era preciso ver o programa e escolher bem. Ele disse que não tinha lido o programa. Incrível. Levantou-se do banco enquanto falava que ia à sessão. Fui em seguida, mas não o encontrei dentro da sala.

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Quando chegam os festivais, eu me dedico a ver o programa e os trailers para organizar o que assistir. A escolha é uma mistura de “linda a imagem de divulgação”, “lindas as cenas do trailer”, “é da América Latina”, “sinopse interessante”, “a sessão é antes das 21h”, apesar de depois tudo se misturar e eu escolher filmes com sinopses que não dizem nada, às 22h, asiáticos – porém eram lindas as cenas do trailer.

Sempre fico triste quando não gosto muito de um filme, porque deixei de ver outro que talvez tivesse gostado mais, mas a surpresa de assistir a um que faz meu coração palpitar compensa qualquer outra decepção. “Fire Supply”, de Lucía Seles, foi, para mim, o auge do Doclisboa deste ano (junto com os do Paul Leduc – os dois ou três que acabei por ver, nenhum deles o da Frida Kahlo, e que realmente foram uma experiência particular). Mais importante do que acelerar o meu coração, “Fire Supply” botou um sorriso na minha cara do início ao fim das suas mais de duas horas e meia de duração, a começar pela fala da própria Lucía Seles antes da sessão. Dias antes, eu tinha assistido a um filme chato e que me aborreceu mais ainda no Q&A, ouvindo a prepotência de quem estuda cinema e diz coisas que só me fazem sentir vergonha de estar na academia. De modo geral, quando cineastas falam antes da sessão, dizem coisas como “não quero falar muito do filme, espero que gostem, depois haverá um Q&A e conversamos”, etc. Porém Lucía chegou no início da sessão, segurando livros e uns papéis, engatou a primeira marcha e seguiu reto lendo seus apontamentos microscópicos. Falou não do que iríamos assistir a seguir, e, sim, das cafeterias de Coimbra e das outras 03 lindas cafeterias que encontrou na Avenida de Roma, que frequentou assiduamente, consumindo muito pouco – provavelmente sendo o tipo de cliente que nenhuma cafeteria deseja. Falou da sua obsessão por querer os livros com as cartas que Florbela Espanca escreveu para o seu médico, mas, quando perguntava deles, esquecia-se do nome do médico, algo que considerou terrível e talvez imperdoável (e afinal uma pessoa lhe deu os livros e ela nos mostrou com grande entusiasmo e disse que eram mais importantes do que a vida, a ponto de querer ser enterrada com eles, porém talvez não – não seria bom para os livros). Lucía tem uma agilidade lógica e léxica invejável, conectou um assunto no outro, narrou cenas, casos, pequenas observações, fragmentos do quotidiano de modo a prender a atenção de quem estava na sua presença. Não citou uma palavra do filme, nada, nem uma curiosidade, uma ressalva, um “espero que gostem”. Dividiu com a plateia o seu modo singular de ver e estar no mundo, e tchau. Depois voltou ao fim da sessão e, na conversa com Cíntia Gil, falou de processos criativos e escolhas estéticas, deixando-me encantada como a sua percepção das coisas.

Quando assisto a um filme com o objetivo de escrever sobre ele, levo sempre uma caneta e um caderninho onde faço apontamentos na sala escura para facilitar depois na hora de escrever. Anoto citações, iluminações que me ocorrem, conexões com outros filmes, um pouco da ordem da história, coisas que me ajudarão na costura da escrita e a manter alguma fidelidade com o que foi mostrado e dito, sempre por receio de perder a pouca credibilidade que tenho enquanto alguém que escreve sobre um e outro filme de que gosta.

Porém “Fire Supply” me pegou desprevenida. Isso porque eu já tinha assistido a outros filmes e tomado notas o suficiente para escrever sobre eles. Saí do filme com tanta vontade de escrever que fiquei chateada comigo mesma por não ter tomado nenhuma nota e com receio de ser incapaz de descrever o filme com a fidelidade que merece. Tem alguns filmes que mexem tanto comigo que me deixam incapaz de expressar em palavras o que senti. “News From Home”, de Chantal Akerman, faz isso; “A Teta Assustada”, de Claudia Llosa, também. E agora, “Fire Supply”, de Lucía Seles.

De qualquer forma, tento.

“Fire Supply” é inventivo na sua forma e no seu conteúdo. E agora eu queria citar aqui Susan Sontag que critica os críticos que explicam o significado oculto nas obras para os simples mortais que são incapazes de percebê-lo, pois não percebem nada de nada – mas não lembro bem como ela fala, e, sinceramente, já estou a desviar do que queria dizer. O filme elogia o olhar para as pequenas coisas, para o banal, o trivial, aquilo que ninguém vê e ninguém se interessa em ver. Coloca no mesmo patamar a vida, a morte, o amor, os objetos, as construções. Elogia um centro comercial na rodoviária que tem assentos para vinte pessoas, e tem três, talvez quatro, pastelarias uma ao lado da outra. Uma rodoviária que tem dois terminais num lugar só, possibilitando que sejam visitados de uma vez sem ter de ir a outra rodoviária. Uma rodoviária que, vale dizer, é tão comum que poderia ser de qualquer lugar do mundo, um desses lugares-comuns que ninguém identifica onde fica, mas que para aquela personagem específica é tão interessante que faz com que ela queira alugar um quarto de hotel ali perto, apenas para poder visitar mais vezes.

O filme elogia os diálogos que queremos ter e não temos por prudência. Um cachorro branco morreu – Pia Girafa – e só isso importa. Vocês dois por favor parem de conversar, pois agora só nos resta consolar o nosso colega que está sofrendo com isso. E como consolá-lo? Vão todos para o canto escuro da quadra de tênis e ficam ali, um ao lado do outro. Porém uma das personagens com uma “marginalidade alemã” banaliza a morte ao dizer algo como: “uma morte inesperada aconteceu, apesar de não ser tão inesperada assim, já que uma hora todos irão morrer”. E vai dar a aula mais importante da sua vida a três homens que querem aprender a jogar tênis – sendo um deles tão lindo que nem precisa tirar os óculos escuros. E o que ela ensina? A caminhar e a pensar. Ordena que caminhem fora da marca da quadra e pensem, em cada jogo, numa coisa diferente: no primeiro jogo, devem pensar no seu pai; no segundo, na sua mãe; e nos seguintes indica pensarem em outras coisas tão triviais quanto os nossos pais – coisas das quais não me lembro, mas que seria algo como pensar nos prédios comerciais vazios no domingo a noite, ou no gelado de amora caído no asfalto quente. E ainda teve uma cena que me fez gargalhar. Um personagem está triste com uma constatação que acabou de fazer: “eu não amo o meu pai”. O melhor amigo, que o ouve, pede para ele não dizer mais nada. Um gesto de empatia que parece se encaminhar para algo como “aconteceu algo específico? relações com pais são mesmo difíceis, tenho certeza de que você ama ele, e que ele te ama, etc.” Mas o que ele fala é: “não se preocupe, ninguém ama os seus pais”. Incrível.

O filme elogia a repetição das imagens e a repetição das falas que quebram e, ao mesmo tempo, realçam o possível improviso dos atores, fazendo os limites entre documentário e ficção se tornarem irrelevantes. E ainda tem a metalinguagem com os comentários em texto feitos na margem do ecrã, tão velozes que quase não acompanho, que misturam espanhol, inglês e sinais matemáticos para chamar a atenção de coisas ridiculamente triviais, como o telhado de um prédio que se vê ao longe, ou uma mulher sentada sozinha na rodoviária que lê por tanto tempo e que talvez esteja lá apenas para isso e não para apanhar o autocarro, ou outra mulher que poderia estar no concurso de quem fuma mais bonito.

É um filme que faz do ato de assistir filmes algo muito simples e, ao mesmo tempo, extraordinário.

Não em elogio, mas inspirada nas variações dos mesmos temas, imagens, diálogos, escrevo esse texto de palavras repetidas, ideias dispersas e parágrafos desajustados no calor do momento. É um texto que sai de forma fluida e veloz e que acende o meu desejo pela escrita como há muito tempo não acontecia. Isso porque Lucía Seles fez um filme para mais de 16 pessoas assistirem, e eu o escolhi entre os tantos da programação do Doclisboa. E, inspirada nesses encontros e conversas improváveis, na homenagem aos cachorros, na morte, que é “como um acidente de carro, só que com final feliz” (ou algo assim), nas repetições, nas lojas comerciais banais, na observação atenta aos detalhes que não importam, escrevo um texto apaixonadamente tosco. Um texto escrito no calor do momento cujo combustível foi “Fire Supply”. Cinema é bom demais, recomendo.

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