Tiago Cerveira, de 33 anos, é natural de uma aldeia do centro de Portugal. Foi a partir da liberdade que vivia no campo que começou a documentar o património imaterial e material do Portugal rural. O seu cinema, não só aproxima as metrópoles dos territórios de baixa densidade, como imortaliza a beleza quase intocada da ancestralidade portuguesa, em filmes que um dia serão a memória de um país. Mas como nem só de futuro vive o homem, @ car@ leitor@ pode sempre aproveitar ‘o hoje’ e planear as suas próximas viagens através da lente deste cineasta em ascensão.
Como é que surge o cinema documental na tua vida?
Tiago Cerveira (TC): Quando eu tinha 7 ou 8 anos, o meu pai comprou uma câmara de vídeo, uma handycam, e deu-me total liberdade para filmar. Aquilo na altura foi um brinquedo e como todos os brinquedos nós eventualmente cansamo-nos e arrumamos aquilo para um canto. Só passados uns 10 anos é que fui rever as cassetes que ficaram daquela época. Senti ali um click ao voltar às férias no campismo, poder rever a família, as conversas, os bons momentos… aquilo fez-me recuar no tempo e senti o impacto da imagem documental, mesmo antes de ter presente este tipo de conceitos. Mais tarde, optei pelo curso de Comunicação Social, por ser abrangente, e quando o terminei tive a sorte de estar a nascer uma webtv lá na minha terra, era uma oportunidade à porta de casa, em pleno pós-crise, poder colocar em prática a experiência que trazia da escola e do associativismo. Quatro anos depois senti que queria mais tempo para os meus projetos, para as minhas ideias e sonhos. Deixei o jornalismo e fui seis meses para Alemanha com o objetivo de juntar dinheiro e comprar o meu próprio material. Viver da cultura em Portugal é desafiante, por vezes temos de ser uma espécie de canivete suíço do audiovisual, entre projetos documentais, trabalhos institucionais, publicidade, criação de conteúdos digitais… que no fundo são outras formas de contar histórias.
Foi aí que nasceu o projeto ‘O Meio e a Gente’?
TC: O ‘Meio e a Gente’ nasceu ainda durante a faculdade, literalmente a partir da horta da minha casa, e de lá fui abrindo a espiral. Hoje tem já uma abrangência nacional, embora seja um projeto que já não está na linha da frente da minha agenda. Ainda assim é um conceito sempre presente no meu trabalho, esta ideia da relação do meio com a a ‘gente’ e da ‘gente’ com o meio, gente que não se limita a usufruir, mas que também contribui para a comunidade em que está inserida. Por outro lado, o ‘Meio e a Gente’ sempre foi mais uma assinatura, uma marca, porque no início eu não queria assinar com o meu nome, e agora acontece precisamente o contrário, tenho uma produtora e o nome comercial é o meu nome próprio. Faz mais sentido quando me envolvo em projetos com assinaturas coletivas, como é o caso do ‘Rostos da Aldeia‘.
Quero que os meus filmes imortalizem essas pessoas, os notáveis, tanto os cotas que nunca saíram da aldeia e que são detentores de saberes ancestrais, como os putos, como nós, que trabalham para a comunidade, preservam-na, alteram-na, aculturam-na, isso também é tradição, algo que está vivo.
Identifico-me com esta filosofia, sou um rural, o meu olhar é parcial, o meu ponto de vista é de dentro para dentro, de culto às comunidades, mas não numa perspetiva fanática nem demasiado romantizada. Viver no mundo rural não é só tirar a fotografia a colher o fruto. É preciso semear, plantar, regar, tem muitas adversidades, isso também tem de ser questionado e registado.
Dirias que de alguma forma o ‘Rostos na Aldeia’ é um upgrade do ‘O Meio e a Gente’?
TC: Sim, é um projeto multi-conteúdo, tem a missão turística do ‘venha ver algo genuíno’, o apelo do ‘apaixone-se por Portugal’ e uma camada documental que certamente terá mais impacto no futuro. Estamos a criar conteúdos informativos e promocionais com uma vertente documental que neste momento talvez não se sinta tanto, mas que se vai tornando evidente com o tempo. A forma como se trata o vinho, como se faz o pão, a pecuária, as práticas agrícolas… Recentemente estivemos em Podence onde acontece uma situação caricata. O Entrudo tem duas festas, aquela do cartaz, para o turista, e as celebrações da comunidade, onde não querem mais ninguém, é realmente a grande celebração deles e não é ‘para turista ver’. É um privilégio poder testemunhar essas tradições através deste projeto. E qual é a tua posição nesse ponto? Eu costumo dar o exemplo dos passadiços e dos baloiços… os amantes da natureza, os que gostam de fazer um trilho, não vão fazer um trilho no passadiço, vão escolher trilhos imersivos e antigos, daqueles que antigamente ligavam as aldeias, onde conseguem ter uma experiência mais sincera e honesta. Claro que há pessoas com dificuldades e que nunca teriam a oportunidade de fazer um trilho num sitio tão maravilhoso sem os passadiços, isto tem várias camadas e são assuntos polémicos… Falando de uma prática como a dos Caretos de Podence (que é umas das últimas que trabalhei), o costume de andar de adega em adega a ‘chocalhar’ as raparigas, era um costume machista que felizmente se tem vindo a alterar, dos três grupos de Caretos com que trabalhei, todos eles estão conscientes que as práticas têm que se adequar à atualidade. Uma grande parte dos Caretos de hoje são emigrantes que vêm só para celebrar o solstício, para se reverem e se abraçarem, isso é que é o verdadeiro património imaterial da humanidade.
No ano passado (2022) o filme ‘Os Restos do Vento‘, que se inspira nas tradições dos Caretos, teve bastante visibilidade. Achas que o documentário é ainda um pouco o ‘parente pobre’ do cinema?
TC: Não é tão fácil alcançar ‘massas’, a ficção muito mais facilmente é tida como ‘entretenimento’. Eu quando quero ir dormir descansado e abro uma plataforma de streaming não vou ver um documentário com um tema denso, vou ver uma ficção light… não digo isto em detrimento da ficção! Por outro lado estamos a crescer muito em literacia visual, já não é qualquer imagem que deslumbra. Acho que as pessoas estão fartas do material promocional ‘redondinho’ com aquela voz off que tudo sabe, o próprio público, quase sem querer, já nos pede isso, que rasguemos as convenções, que o conteúdo tenha de facto conteúdo.
Qual foi o projeto que mais te marcou e porquê?
TC: Um dos filmes que mais me marcou, por motivos menos positivos, foi o ‘15 Memórias do Fogo‘. Houve um grande incêndio no 15 de Outubro (2017), na minha região, que varreu completamente o concelho, só ficaram as agremiações das aldeias. Na altura, por desafio do Rodrigo Oliveira, que é meu vizinho do concelho de Arganil, fomos para o terreno gravar relatos, sem lágrimas nem chamas, fomos bater de frente com o problema, as pessoas ainda estavam com as feridas abertas – passo a expressão – e foi uma catarse também para nós que tínhamos estado a apagar o fogo até ao tapete de entrada de casa. Nem pensámos em apoios, foi mesmo um sentido de documentar, porque se agora já é difícil explicar a dimensão do que se sentiu naquela noite, imagino daqui a 10 anos, ficaria perdido, e não aprenderíamos nada com a situação.
Marcou-me, por outro lado, porque eu nunca tinha sentido, do ponto de vista do operador, o quão uma câmera pode ser um filtro tão forte, eu revia-me ali, mas aquela câmera pelo meio protegia-me e possibilitava-me continuar a minha missão.
De tudo o que tu fazes, o que é que te dá mais prazer fazer?
TC: É estar no terreno. As pessoas pensam que nós só estamos a trazer a oralidade, as histórias, mas trazemos muito mais, o povo português nisso é espetacular, no início é muito desconfiado, mas quando há frontalidade, e os olhamos nos olhos enquanto os escutamos, isso muda, e no meu caso é uma vantagem ter um set de filmagem pequeno, é menos invasivo. No projeto ‘Rostos da Aldeia’ (www.rostosdaaldeia.pt) há um grande trabalho de pré-produção, de contactos, ficamos inclusive alguns dias na aldeia, a palavra espalha-se e quando damos por nós estamos à mesa com as famílias… já aconteceu!
Para se conseguir mesmo entrar na vida de uma pessoa, em termos documentais, são precisos muitos dias, até a pessoa se libertar completamente da câmera.
Queres deixar algum conselho a quem está a começar no cinema documental?
TC: É fazer. A minha experiência é curta e tenho ainda muito pela frente, assim o espero, o que nunca me privei foi disso mesmo… fazer. Não ter problemas com o erro, com o julgamento, gerir expectativas, sobretudo quem está a começar e trabalha sozinho. Tenho um filme que eu nunca pensei que ganhasse tanta expressão… documentei o último dia de trabalho da minha mãe que trabalhou 47 anos numa fábrica. Aquilo para mim era um filme de casa, um filme de família, mas quando o tornei público nas redes sociais muita gente se reviu naquela história. O que eu quero dizer é que os motivos para um bom documentário podem estar até na nossa casa, basta escolher um bom ponto de vista.
Tiago Cerveira apresenta dia 30 de Setembro, na Casa do Cinema de Coimbra, o vídeo-album com todas as canções do disco da banda Birds Are Indie. O documentarista conta já com várias premiações, entre elas, Prémio “1º Lugar – Tradições” – MarMostra 2023; Prémio “Melhor Cinematografia” – Travel Fest Albânia 2023; Prémio do Público – Shorts@Fringe Açores 2023; Prémio “Gold Award” – Internacional Tourism Film Festival Africa 2023; Prémio do Público – Montanha Pico Festival 2023; Prémio Navegantes XXI – Melhor Projecto Turismo Digital – Rostos da Aldeia 2022; Prémio Melhor Filme Sítios UNESCO – ART&TUR 2022; Prémio Melhor Filme Questões de Turismo Sustentável – ART&TUR 2022; Prémio Fotografia – Jovem Criador Aveiro 2021; Prémio Documentário Novas Vistas Lumière – Mar Film Festival 2020; Prémio Melhor Filme Internacional < 30 – Avanca Film Festival 2020; Prémio Lusofonia Panorama Regional – CineEco 2015, 2019 e 2020; Prémio Juventude CineEco 2018 e 2019; Prémio Best Webdoc Internacional – ART&TUR 2019; e Prémio Curtas Metragens ASPEA 2019.