Depois de ver um filme de Pedro Almodóvar tenho sempre a sensação estranha de que existe algo nele que resiste à análise. Do seu cinema emana uma leveza desconcertante, um humor que advém de uma inocência tão completa, que só nos resta sentar e viver o seu cinema. E a palavra vida é aquela que melhor caracteriza aquilo que subjaz a toda a sua obra, sobretudo no seu último filme, “Dor e Glória”.
Almodóvar conta-nos a vida, desde a infância, de um cineasta, que atravessa uma fase de estagnação criativa. Fustigado por diversas maleitas, tanto do foro físico como psicológico, Salvador (Antonio Banderas) vai-se encontrando com o seu passado, numa tentativa de se reconciliar com o seu presente.
Não há outro meio de aprender senão pela vida: se a geografia Salvador a aprendeu quando viajou pelo mundo, graças à crescente visibilidade dos seus filmes, a anatomia aprendeu através das dores que lhe iam desenhando uma cartografia das diversas doenças que se iam instalando no seu corpo. A personagem apresenta-se na sua essência, como uma síntese entre as dores do seu corpo e a glória do seu cinema. E, talvez a essência de tudo o que criamos e expressamos seja o resultado desse segundo cordão umbilical simbólico que nos liga ao mundo da vida, e que só se desfaz no momento do nosso último fôlego. Neste ponto, Almodóvar parece abraçar o universo do cinema felliniano, onde vida e cinema não se separam. A própria narrativa aproxima-se de “Oito e Meio”, onde acompanhamos Guido (Marcelo Mastroianni), que enquanto não sente em si a força necessária para levar a cabo o projecto que tem em mãos, vai viajando até às suas memórias de infância, trazendo até à superfície os seus medos e fantasias. Salvador, tal como Guido, descobre que é nessas memórias, e nas pessoas que as povoam, que o filme já existe.
Almodóvar sabe que a infância é um mundo inteiro por si só. É aí que encontra a fonte mais pura para a sua arte, quando nos mostra a intensidade das primeiras experiências que fizeram o artista que passou a viver dentro de si. Essa criança, que colecionou os cromos com as caras das estrelas de Hollywood e que viveu dentro de uma “gruta”, é hoje o artista que sabe o valor daquela entrada de luz que vem redimir, pela potencialidade da sua câmara, toda a materialidade onde se espraia. É essa luz que toca o corpo nu de Eduardo, que entrega aos seus olhos o seu primeiro vislumbre de desejo. A força dessa imagem faz com que o seu corpo quebre, porém, terá sido nesse momento, e pelo intenso brilho dessa luz, que Salvador, como numa epifania, escolhe dedicar a sua vida a uma arte capaz de manifestar em imagens o seu amor pela beleza.
Antonio Banderas absorve para dentro de si todos os afectos de dor, prazer, inebriamento, angústia e reflexividade. O filme chega-nos através desse corpo, que não para de mergulhar num fluxo de tempo entre o passado, presente e futuro, para daí sair com um impulso criativo que parece tardar, mas que na verdade já foi posto em acção. A cena final redefine todas as imagens anteriores, e todos os estados de espírito da personagem. A subtileza com que Almodóvar concebe essa mensagem é o ponto mais original do filme, pois até aí tudo são saltos ao passado, que aparentemente não possuem um referente narrativo claro. Basta um plano para tudo redefinir, para tudo se clarificar em nós. O poder do cinema está plasmado nesse plano de curta duração, nesse momento em que descobrimos duas coisas importantes: de um lado, o amor sem limites que leva alguém a querer fazer filmes; do outro, o poder de comunicação do próprio meio cinematográfico. E, sem esse primeiro impulso em estado puro, nada seria comunicado a não ser aquela mesmidade vazia e mortificada que vai esgotando a vida dos nossos dias.
Realização: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia
Espanha/2019 – Drama
Sinopse: Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um diretor de cinema, que se vê obrigado a refletir sobre as escolhas que fez ao longo da sua vida quando o passado e presente desmoronam ao seu redor.