“Duna”, O Infindável Deserto de Ideias

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Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

 

Duna”, o famoso livro de ficção científica que Frank Herbert escreveu na década de 60 sobre o planeta deserto, é um complexo e fascinante conjunto de histórias e conceitos. Depois de Jodorowsky sonhar o seu impossível filme, gerou-se a ideia de que “Duna” seria inadaptável a filme, algo a que a real adaptação de David Lynch daria ainda mais força.

Durante décadas, muitos terão sonhado ainda em fazer o filme que captaria o verdadeiro espírito do livro, mas apenas Denis Villeneuve teve o engenho e a arte de o trazer à tela em 2021 com o verdadeiro intento de ser o mais fiel possível ao material de origem. O filho de Frank Herbert confirma que Villeneuve o conseguiu, mas arrisca-se a ideia de que se fala de uma adaptação fiel da história e não do espírito.

O “Duna” de Villeneuve é desprovido de espírito, apesar de ao longo de mais de duas horas e meia de película cobrir de modo mais do que capaz a história do planeta Arrakis e das famílias que se digladiam pelo domínio da sua tão cobiçada especiaria.

Os Harkonnen dominam o planeta desde há algum tempo e o imperador padishah estende o tapete aos Atreides para que substituam a casa dos Harkonnen no seu papel de gestores dos bens que pertencem ao imperador.

A questão é que “Duna” é muito mais do que uma disputa pela riqueza e a sua profundidade espiritual nem sempre é fácil de entender ou captar em imaginação, muito menos em imagens em movimento que lhe façam inteiramente jus.

Por exemplo, a especiaria é fulcral nas viagens interestelares, mas, ao mesmo tempo, é usada como substância psicotrópica que permite a expansão da mente e a percepção de dimensões da realidade que não estão acessíveis de outro modo.

Por isso, os sonhos proféticos de Paul Atreides, que Villeneuve parece utilizar apenas para contextualizar a tão cobiçada Chani (Zendaya), podem ser muito mais do que a mera manifestação do seu papel messiânico e representar a sua ligação profunda aos Fremen.

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Chani (Zendaya) Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

O “Duna” de Villeneuve é muito mais modesto que o de Lynch (que não é seu, relembre-se) e ao invés de condensar os dois primeiros livros num só filme, dividiu-o em duas partes, estando a segunda já programada para 2023, tendo em conta o sucesso comercial do primeiro título.

Na sua enorme ambição técnica, Villeneuve criou um filme visualmente épico, bem na senda do gosto estético que vem alimentando desde “O Primeiro Encontro” ou “Blade Runner 2049”, limpo, ético, quase demasiado profissional, sem defeitos, uma ficção científica que não se suja com uma gota de óleo ou um sangue muito espalhafatoso.

Duna” é mesmo assim, não se suja nem por nada porque não arrisca nada para lá da linha do horizonte e, nesse aspecto, a versão de 1984 foi muito mais interessante ao sacrificar algumas linhas de história e mesmo a estética para criar uma obra menos ortodoxa – goste-se ou não dela.

Muitos dizem que falhou e provavelmente ficou muito aquém do livro, mas o risco que correu e as interpretações em que incorreu, conferiram-lhe a dimensão espiritual que a versão de 2021 poucas vezes alcança – e esta é a única comparação possível nas linhas deste texto, tudo o resto é mais que merecida liberdade criativa.

Os relacionamentos entre os personagens não são aprofundados nem explicados e com tantas horas de filme, a maior parte dos pontos fulcrais que provêm do livro não têm a importância ou força em que o livro se demora. Se Villeneuve diz que segue piamente a história do livro, não parece reflectir-se no filme.

Em pelo menos três relacionamentos não é reconhecível a ligação emocional umbilical – metafórica e real – que os une no material de base, nomeadamente a de Paul com a mãe, Lady Jessica, Paul com Duncan Idaho e Gurney Haleck e Paul com o pai, o Duque Leto.

No primeiro caso, nem a tão desgastante e tensa caminhada no deserto os torna mais próximos ou é focada a importância vital da gravidez de Lady Jessica, que tem um papel importantíssimo na segunda parte da história.

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Lady Jessica (Rebecca Ferguson) Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

No segundo caso, são personagens quase dependentes umas das outras, tal a sua lealdade, e no filme abraçam-se apenas umas poucas vezes e, por isso, o seu sacrifício em relação a Paul não alcança a profundidade da ligação daqueles dois homens à casa de Atreides. Aliás, é essa lealdade que confere carácter aos Atreides e os separa de forma inequívoca dos vis Harkonnen, sendo um dos pontos em que Herbert mais se demora na introdução do livro.

No terceiro caso, Paul e Leto falam superficialmente sobre a vertente economicista da sua presença naquele planeta que é tão diferente do seu, Caladan, e há apenas um momento significativo em que o Duque admite que nada espera de Paul a não ser que seja seu filho.

Nem mesmo a fragilidade que Chalamet confere a Paul consegue imprimir a verdadeira dimensão da tarefa que recai sobre os frágeis ombros de um jovem que aos poucos se prepara para ser o Muad’Dib (o rato do deserto).

A reflexão sobre alguns dos relacionamentos centrais pode alargar-se um pouco a todos os aspectos do filme, tratados com o mesmo desligamento e falta de conexão.

É como se Villeneuve fizesse constantemente fast-forward na história com receio de tocar nas feridas que “Duna” apresenta sob a superfície, desenvolvendo em formato unidimensional cada um dos personagens sem necessariamente lhes conferir uma personalidade – dá-lhes apenas características.

As Bene Gesserit não soam tão ameaçadoras, o barão Harkonnen não tão nojento e proeminente (apesar dos efeitos que o fazem voar serem do melhor que o filme tem), da profecia apenas se ouvem breves murmúrios do povo do deserto ou aqui ou ali que Paul é o Kwisatz Haderach, o messias, o salvador.

Nem tão pouco se liga o imenso significado religioso aos Fremen, ao deserto, à ecologia de Keynes, apesar de que, em parte, a sua conversão em personagem feminino parece aludir ao seu carácter profundamente dúbio e oculto.

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Liet Kynes (Sharon Duncan-Brewster) Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

Sabe-se muito pouco sobre “Duna” se já não se souber antes todos os elementos que fazem da primeira parte um grande marco da ficção científica, já que estão ausentes no “Duna” de Villeneuve.

Não basta, pois, fazer um filme graficamente impressionante para que seja bom e “Duna” é visualmente impressionante, algo a que Villeneuve tem habituado o espectador nos seus filmes mais recentes.

À semelhança daqueles, “Duna” é tão ou mais vazio de sentimento e conteúdo, não arrisca nada sobre o livro, não interpreta, não reflecte, não diz. E como se consegue fazer isso com um material de base tão rico e complexo?

Em “Duna” nem os vilões são assustadores e nem o dúbio Kynes é preponderante, não se explica sequer convenientemente o seu papel na regeneração ambiental de Arrakis e de como nesse ponto que parece tão simples esse papel é dos mais subversivos de “Duna”.

A eliminação da atmosfera estéril de Dune, o planeta desértico, representa a eliminação do poder que a especiaria confere às mãos mais corruptas e mesmo a sugestão de que o poder do Imperador pode tornar-se inútil. A sua ligação com os Fremen também é das mais importantes do livro e mais uma vez Villeneuve apressou toda essa história.

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Charlotte Rampling como Gaius Helen Mohiam, no teste Gom Jabar a Paul
Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

Para quem vê o filme, a sensação que fica em relação a Kynes e à maioria dos intervenientes resume-se aos seguintes passos: eis o personagem – chama-se x, faz y – é sacrificado ou morto –  fim. É ficção pouco científica e com certeza não é um bom argumento.

Impressionante é como num filme temporalmente extenso, Denis Villeneuve só pareça ter tido tempo para explorar o aspecto visual de Arrakis, quanto tinha tanto mais para fazer.

No que diz respeito aos efeitos visuais, refinou o seu trabalho de representação do futuro com estilo e é com fervor que se assiste aos belíssimos efeitos de asa dos ornitópteros, por exemplo, à recriação da tentativa de assassinato de Paul pelo Dr. Yueh ou a toda a tecnologia envolvida, que no livro já se encontra muito datada.

Contudo, aquilo que dá vida a “Duna” não se encontra no filme e isso é tão mais grave quanto a segunda parte da história será ainda mais complexa e obscura. Como vai Villeneuve replicar a intrincada existência de Chani, o relacionamento com a irmã ou o desenvolvimento psicológico de Paul adulto soberano no seio dos Fremen? Mais, como vai explicar a irmã de Paul?

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Stilgar (Javier Bardem) Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

Duna” tem ainda um problema de linguagem, como se se tratasse de um moderno jovem de Hollywood preso no corpo de um vetusto sábio ou filósofo. A universalidade dos seus temas é ligeiramente hollywoodizada na postura, visível por exemplo, no seu protagonista.

Timothée Chalamet, um brilhante jovem actor que aqui interpreta Paul Atreides de forma tão blasé e desinteressada que é possível questionar se seria mesmo esta a intenção ou é algum trompe l’oeil a que não se consegue aceder.

Arrisca-se mesmo: o Paul de Chalamet está muito próximo de um adolescente capaz de se virar para Lady Jessica e dizer-lhe que não lhe apetece nada agora usar a voz e que vai jogar Playstation.

Se existe algo mais omnipresente que a pouca capacidade de Villeneuve imprimir personalidade ao seu “Duna”, é a banda-sonora, criada pelo mestre Hans Zimmer.

Zimmer criou o ambiente perfeito para o planeta deserto e empresta ao filme o pouco de profundidade interpretativa que carrega. Peca apenas por, por vezes, ser tão omnipresente que chega a abafar o próprio som das sequências. No contexto do filme, contudo, isso poder ser considerado uma bênção.

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Dune © 2021 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

A desculpa de que um livro não é adaptável a filme não pode servir para sempre e depois da experiência do “Duna” de Lynch, não conseguir captar a alma do livro parece mais frustrante em 2021.

O “Duna” de Villeneuve não chegou, qual messias, para resolver aquele problema de adaptabilidade, embora as suas intenções sejam nobres e, de facto, o realizador pareça dedicado a algo que o apaixona de verdade.

Das intenções à realidade, todavia, por vezes vai um enorme salto, sendo o caso desta adaptação. Resulta uma portentosa obra gráfica, visual, tão deslumbrante nesse sentido que chega a fazer com que o espectador esqueça qual o grande motivo pelo qual ali se encontra.

Se a forma é perfeita, o conteúdo fica muito aquém da mensagem que Frank Herbert transpôs para o livro e inúmeras são as referências que simplesmente nem aparecem no filme – e são importantes.

De muita da ficção científica clássica, resulta sobretudo uma enorme reflexão sobre o homem e o seu contexto no universo, a sua relação com o planeta que habita, uma forte mensagem ecológica e um pensar sobre a Humanidade de uma forma tão afastada dos contextos sociais vigentes que, de facto, são gerados mundos que parecem ficção.

Esse pensamento ou outros estão ausentes do “Duna” de Villeneuve e é por isso que, por muito que tenha sido o esforço e a dedicação, não dizer nada ou dizer muito pouco a partir da obra de Frank Herbert no mundo actual é ter perdido a oportunidade não de realizar um sonho, mas de poder transformar a realidade.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

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