Este é um filme de violência. A que está dentro, a que sai para fora. Aquela que está, aquela que se respira, a que corrói e que extravasa, e se multiplica. A violência da ultra-ideologia não precisa de armas, tem como seu maior e maligno modo de expansão a mera palavra, como se que aquilo que se diz mais não seja do que aquilo que mais magoa e corrompe, a veracidade do outro ser que se invectiva, a sua humanidade física e a sua completude intelectual, o seu ser e o seu estar. Os que ofendem e que menorizam os outros, no entanto, gostam das armas, amam-nas, em boa verdade. E disparam-nas.
Matam, em nome da sua ultra-ideologia, exagero em nome de uma radicalidade obtusa, que nada tem a ver com olhar radicalmente (revolucionariamente) para os modos, formas e estados do mundo contemporâneo, mas sim com impor uma cultura da violência, o estar violentamente, o agir violentamente. De ambos os lados, não há heróis, só atacantes, ironicamente revelando que as ultra-ideologias podem até mudar (aparentemente) as cores dos seus uniformes, mas ainda os lados se mantêm, ainda que as trincheiras já não sejam as dos tempos modernos, sejam antes as do contemporâneo mal-estar que teima em tornar-se físico, disparador, explosivo, mortal.
Joe Cross (Joaquin Phoenix) é um desses não-heróis, que não se diria prontamente dado e disposto a se fazer violento, mas que, no entanto, borbulha no seu silêncio e no seu olhar aparentemente desprendido e não focado. Estando numa posição de poder securitário – é o Xerife da vila titular do filme – ele é parte do aparelho burocrático-armado, feição de um estado de coisas que se faz um estado-de-armas, sempre pronto a poder ser ativado. O seu feudo com o Mayor Ted Garcia (Pedro Pascal), acerca do que é o conceito de liberdade – o uso ou não de máscaras em pleno efervescer da pandemia de COVID 19, mas ainda não chegada a Eddington – efetiva a ultra-ideologia como um estar perante os conceitos sociais que os idealiza e forma como absolutas forças que não se podem pôr em causa e que têm que ser “forçadas” a serem irredutíveis: não pode nunca a liberdade de ser e de fazer ser posta em xeque pela outra liberdade de ser e fazer. E isso porquê? Porque a ultra-ideologia pressupõe a ultra-verdade, a verdade que já se ultrapassou a si mesma, já não comporta o seu contraditório, é uma verdade que não precisa de veracidade, é de quem a afirma, e só esse afirmar chega para a fazer verdade, porque é afirmada, dita, validada, pelo simples ato de ser dita e re-afirmada pela constante afirmação-re-afirmação.
A ultra-verdade é o que está para além da verdade, é a ultrapassagem da decência linguística e aforística do que se pode dizer como “verdade” dita. Essa é a tensão entre Cross e Garcia, entre brancos e negros, entre ricos e pobres, entre os donos da terra e os despojados históricos, entre quem é extremista e quem não se sabe posicionar ideologicamente e é capaz de saltar de um extremo esquerdista para um extremo direitista, sem saber sequer que as verdades (agora as ultra-verdades) são impossíveis de situar num mundo contemporâneo que não as consegue reter, porque o conceito da verdade se perdeu para o bem mais apelativo (ultra)conceito imagético de ultra-verdade, formado ele que é pela ubíqua imagem vídeo dos dispositivos móveis que constantemente a materiarializam e recriam.
A ultra-verdade é a supra-mentira e esta é, hoje em dia, absoluta e puramente videográfica, é uma ultra-imagem da desmaterialização da decência, é multiplicação de visionamentos e comercialização das multi-mentiras e dos multi-enganadores. Não há mais verdades, absolutas ou relativas, só restam as ultra-verdades dos mentirosos, sejam eles políticos ou não políticos, célebres ou anónimos, posicionados ou disposicionados, bilionários ou minimamente assalariados. Essa foi a grande perda civil: a da decente argumentação dos pontos de vista diversos, a da opinião dirimida, a da conversa fundada em olhares diferenciados mas que tem em si o rosto de uma coisa acontecida e verificável, não da mentira descarada e dita sem pejo algum que não seja a da distorção pela inverdade absoluta.
Como pode ser assim ser construído um “western” da pequena vila, entre o seu centro vazio e a sua ultra-suburbanidade (tema já desenvolvido por Ari Aster em “Hereditário”)? Como pode ser ela um microcosmos do que se passava e passa na América de hoje em dia, contaminadora, por razão da sua centralidade imagética (agora ultra-imagética e supra-mentirosa) que tanto faz influir na contemporaneidade de um atual ferido e repleto de sangrias e sangues que correm por esse mundo fora? Serão Cross e Garcia dois “cowboys” modernos-a-contemporâneos, sempre a olhar para os seus smartphones, sempre a construírem vídeos de si mesmos, uns mais documentais e simples, porque o “xerife” não tem o mesmo dinheiro que o “mayor” que pode verdadeiramente contratar a produção profissional de um filme-mentira auto-indulgente e cinematizado com “slow-motion” e “motion graphics”? As ruas vazias são os corredores de uma fantasmática que está imbuída no visionamento contínuo, num “scrolling” de imagens-mentira para outras imagens-conspiração, num multi-hiper-texto impossível de decifrar porque não pode se situar numa outra coisa do que num cansaço hiperativo em que já não pode realmente haver um ponto focal de partida e de chegada, tudo se diz e tudo está dito, a informação é tudo, e o nada é não se dizer nada, não se afirmar que “isto é assim” porque está posto no ecrã e alguém o disse como forma conspirativa de uma mentira que se diz sobre uma segunda, terceira, quarta, quinta versão de uma mentira inicial, a qual já não pode ser destrinçada de forma alguma. O fechamento a que se foi obrigado, naquela vila que Aster reconstrói como o vazio da sua América, foi e é o fechamento a que o mundo se deu, a doença foi física, mas o mal é agora mental, o vazio é o do mergulho das imagens-mentira. O vazio não só o da América, nem ela tem que ser o espelho reflexo de todos os males que também todos os outros (os nós, os eles) se foram deixando cair. O vazio é o do mundo contemporâneo, o da farsa constante, que só é mais (aparentemente) americano porque os outros (nós, europeus) somos menos dados a tão grande espetáculo que é a mentira permanente feita espetáculo de si mesma.
Quando os jovens manifestantes, em som e em fúria, tomam as ruas tórridas, o encher do ecrã não produz outra coisa do que não seja a percepção da impotência de quem grita e não fala, de quem se tenta sobrepor ao “estado policial” e nada consegue mudar, porque o grito dispersa-se na impossibilidade de comunicação e na dificuldade extrema de resolver a História, essa que se afirma na interioridade perdida da “small town”, feita das inequalidades irresolúveis que fizeram a prosperidade da América e o seu desnivelamento social, que cresceu e crescerá sempre na inversa proporção de criação da sua riqueza. A impossível serenidade não se fará na histeria nem na conspiração, nem no confronto entre os poucos polícias e os manifestantes. A razão de quem protesta, marcada por essa disfunção histórica, perde-se no mesmo ato violento com que se afirma, apesar de essa violência (grito, confronto, ataque) ser só uma outra forma de se ser radical pelo ato do radicalismo, sem o pensar e atuar civilmente, como seres civis, que se apostam a mostrar, pelo exato oposto – pelo que se pensa, a ideia radical de um mundo diferente, construído por decisão refletida e constantemente repensada – que o crescimento e superação das contradições sociais se fará pelo respiro e pela serenidade. Ora, não há nada de sereno neste confronto ao calor, há a manifestação clara, como só no Cinema se consegue mostrar, do quanto doente está um país, de quanto tenso ele se faz, de quanta intolerância se deixa popular no que deveriam ser as ruas da justa e vocalizada manifestação, mas que só materializam a ultra-ideologia que não propõe a mudança pensada, só a violência. E assim sendo, só a violência falará, e a sua razão é a dela, as suas revoluções são os reflexos de como ela é usada, por que lado seja, tendo mais ou menos razão, seja ele mais liberal-capitalista ou mais estatal-socialista, quem vencer instalará o seu modo de ver e o seu poder. No fim, perdem todos, porque só o que veio com a violência, já perdido está do seu pressuposto novo-mundo e do seu radical refazer. Que se pense, que não se mate.
O “western” é pois outro: é sobretudo mental, no calado ato de se olhar pela mira da espingarda, e quanto a calma de Cross é uma outra tensão que quer explodir e não pode, ou poderia ter explodido e ele nunca quis, até que o momento é o da passagem para um regime de assassínio, de frio matar, pelo ajustar da mira, pelo repetir do tiro, pelo não deixar nem pai nem filho vivos, pelo entrar cuidadoso na cena do crime que há-de vir a ser e que ele cria, de pés camuflados, o “cowboy” é realmente moderno, sabe das técnicas forenses, sabe como olhar para a cena criminal, ele a define, ele a desenha, quanto mais gélido e nada dizendo, mais ele é o vilão que não se contava que ele fosse. Do democrata se faria o déspota, assim fica claro.
Mentira de si mesmo, mentira de sua imagem (a ultra-imagem e a ultra-verdade de Cross é a inverdade total de quem ele é), ele é o “negative cowboy”, que foge, correndo e caindo pelas colinas de areia do seu deserto-vila, edifícios esparsos, ruas abertas, tiros vindos dos fatos negros que não se sabe realmente quem são, terroristas de esquerda ou de direita, revolucionários do fim, capangas dos capitalistas “tech”, é o terror afinal, os riscos das balas, o respirar ofegante, a COVID a tomar-lhe o corpo, o torpor que ainda dispara, a metralhadora é “military grade”, barulhenta e explosiva, por onde fugir?, para onde atirar?, o fantasma negro que dele se aproxima, faca na cabeça, paralisia a vir, e não é que ele se torna “mayor”? Mentira que ele é, nada mais poderá dizer, os seus membros são a sua política futura, a de estar numa cadeira de rodas, de mais não ser do que a imagem não verdadeira daquilo que nunca foi e que poderia, talvez, aspirar a ser: um homem sério.
O que fica é a tensão, sempre a tensão, as injustiças da terra, o esquecimento dos desprovidos, o sistema há-de continuar, o “data center” inaugurado ficará, mais dinheiro, mais poder, e Aris Aster assim o sabe, o radicalismo ficou expresso e falado, com certeza, mas ao menos deixa-nos a dúvida: que lado a tomar, que parte radical a advogar e a gritar? O lado certo é sempre o lado certo? O que é escolher o bom lado? Só se pode duvidar realmente, pois as imagens, as ultras-imagens, os ecrãs das ultra-verdades constroem a conspiração da grande mentira, a que há-de sempre pôr uns contra os outros.
O “western” faz-se filme do terror das violências ditas e cumpridas. Aster faz um filme sobre a violência, sim, mas mais ainda, faz um filme sobre o terror do nosso contemporâneo e desfasado ultra-urbano: onde já não há a verdade, não pode haver o amor e a paz entre os homens e as mulheres. Por tudo isto, tem que se o dizer, este é um filme da ultra-violência humana.

