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«Eduardo Mãos de Tesoura» – Da solidão à solidão

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O filme “Eduardo Mãos de Tesoura” (1990) marcou-me de uma forma indelével e, por isso, considero-o um dos filmes da minha vida. Vi-o, ainda criança, e foi um grande intensificador de memória. Com este filme e estas imagens, que me perseguiram tão persistentemente – assombrando-me em criança, fascinando-me quando adulto – tive a consciência do poder do cinema, que reside na capacidade de nos abalar a sensibilidade e de activar essa misteriosa fábrica de imagens que há em nós, a memória.

O filme inicia com a narração de uma história que a avó conta à sua neta, enquanto a neve vai caindo no exterior. Qual a origem da neve, pergunta a neta. Com esta pergunta, somos enviados para um mundo mitológico, onde não existem explicações científicas, mas apenas histórias que contamos desde que nos espantamos com algum fenómeno, sempre misterioso, e que só assim permanece enquanto não é invadido por uma vontade de verdade, abstracta e explicativa, que lhe retire essa sua essência. Embora a questão da criança se faça desde o mundo real – que é o lugar dos acontecimentos e das perguntas que fazemos sobre eles – a parte realmente viva é a história que lhe dá um sentido e a sua tradução em imagens. Assim, Tim Burton mostra-nos que o cinema pode também contribuir para a recuperação de uma intensidade mitológica perdida.

Tal como os antigos gregos, Tim Burton incorpora o poder do mito dentro de uma tragédia moderna que parece conter a verdade da irremediável imperfeição que constitui a humanidade.  Esta tragédia moderna, ao mesmo tempo que nos mostra o contraste entre a fantasia e a realidade, revela como ambas fazem parte do mesmo mundo. Por um lado, vemos uma pequena comunidade afogada nas suas vidas milimetricamente rotineiras, com as suas religiosidades, as suas crenças de sobrevivência, uma juventude que se prepara para imitar e reproduzir esta mesma forma de estar e de pensar. Esta é a parte realista do filme, a vida pequena que limita os habitantes desta comunidade à repetição, representada através de um minimalismo formal, pela geometria básica das casas, das ruas, dos jardins muito iguais, com as mesmas sebes, até que as tesouras do herói peculiar desta tragédia lhes retirem essa monotonia estética. Esse ser é Eduardo, criado por um velho cientista que morre antes de o terminar, deixando-o com tesouras no lugar das mãos. Eduardo vive num castelo que fica ao lado desta pequena comunidade, como se esse seu local – embora colossal e majestoso – fosse ignorado pelos moradores da aldeia devido a um medo crónico pelo desconhecido. A motivação que leva alguém da aldeia até essa sua morada é tão básica como uma vontade de querer vender cosméticos! Então conseguimos ver que o outro lado da aldeia não é minimalista, mas barroco, cheio de formas elaboradas, com um jardim repleto de sebes enormes, que representam dragões e também uma mão, expressão que traduz um momento de dor da sua história pessoal. Eduardo é levado até à pequena aldeia, e com ele, leva a beleza que habita dentro de si para a espalhar um pouco por toda essa comunidade demasiado rectilínea. Este herói, inocente, inacabado e inadaptado é o exemplo de uma força activa e criadora, pronto a oferecer-se por completo a tudo o que o rodeia, sem esperar nenhum retorno a não ser a admiração contemplativa que provoca dentro de seres que, antes do contacto com suas obras, pareciam ter nascido desprovidos de uma sensibilidade. Eduardo é uma estrela absolutamente ígnea pela força criativa que o compõe, mas essa energia começa a ser extinta e devorada pelas forças reactivas da comunidade onde foi inserido. Com o tempo, vemos que a estreiteza espiritual e o preconceito começam, primeiramente, a apropriar-se dos seus dons artísticos para gerar lucro, para, num segundo momento, rejeitá-lo e expulsá-lo da sua comunidade. No final, apenas resta o artista e sua solidão, como uma essência da qual ele nunca se pode despojar, correndo o risco de se perder a si mesmo e ficar refém de um mundo que aplica todas as suas energias para lhe retirar uma inocência que é como uma dureza que o salva de todos os moralismos que contaminam e apequenam a vida. Eduardo volta ao lugar onde pertence, e a neve, que vemos cair com graciosa leveza, são fragmentos de uma obra de arte nunca acabada, são signo da presença daqueles que se comprometem a dar formas outras ao mundo. No fundo, a neve simboliza as tesouras que salvam o mundo, devolvendo-o, revitalizado, aos olhos demasiado cansados, exangues pelo trabalho, desgastados pela rotina.  É Eduardo quem traz a beleza para dentro do filme, fazendo deste filme uma verdadeira apologia a toda a criação artística, comunicando que ainda é possível ao ser humano maravilhar-se e regozijar-se com o trabalho quase mágico desses desveladores da verdade a que chamamos artistas.

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Eduardo é uma personagem arquétipo que transmite o artista ideal: inocente, solitário, ensimesmado, contemplativo, que, através da sua dedicação ao mundo, o consegue transformar, não para o melhorar moralmente, mas para o preencher de beleza.

“Eduardo Mãos de Tesoura” representa a importância da criação, para que a mesmidade da realidade quotidiana seja salva pela afirmação de forças activas, as únicas capazes de deixar uma indelével beleza num mundo repleto de hábitos monótonos e de vida pequena. E, mais forte e concreta do que qualquer crença religiosa, o artista sabe que por mais frio que o mundo se torne, essa neve glorificada por um toque quase divino não cessará de cair.

a97b9879bdfad6044239eaaefc050936e75bc32d 4Realização: Tim Burton
ArgumentoTim Burton
Elenco: Johnny Depp, Winona Ryder, Dianne Wiest
EUA/1990 – Drama
Sinopse
: Uma história tocante sobre um homem que não pode tocar. Johnny Depp intrepreta o papel de um homem artificial que vive isolado do mundo até ser encontrado por uma rapariga da povoação próxima (Winona Ryder). O facto de estes se tornarem amigos irá mudar radicalmente a vida de ambos, para além de acarretar graves e grandes repercussões na vida da própria comunidade vizinha (sobretudo pelo facto de Eduardo, na sua alma um artista que cria o belo, ser no seu exterior uma aberração, algo fora do normal). Um conto-de-fadas moderno que retrata não só o amor como a tragédia que a ele pode estar inerente!

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