Eline Gehring: “Queríamos fazer um filme que fosse finalmente tão diverso quanto o nosso público”.

Eline-Gehring

“Nico”, da alemã Eline Gehring, conta a história de uma mulher germano-persa que vive em Berlim e trabalha como enfermeira geriátrica. A sua vida transforma-se quando é inesperadamente atacada na rua por um grupo racista e xenófobo. Para conseguir lidar com o trauma gerado pela agressão, Nico inscreve-se numa escola de karaté.

A respeito da sua longa-metragem de estreia, conversamos com a realizadora sobre o seu processo colaborativo com a atriz Sara Fazilat e a diretora de fotografia Fanny Fabritz, a importância da autenticidade no trabalho com os atores profissionais e não profissionais e o desejo comum de romper com os estereótipos. Gehring contou-nos também da vontade de realizar um filme tão plural quanto o público alemão e do seu interesse em representar a subjetividade e o desejo femininos no ecrã de forma adequada.

A longa integra a programação da 20.ª KINO – Mostra de Cinema de Expressão Alemã. O evento acontece em Lisboa entre os dias 2 e 18 de fevereiro e, pela primeira vez, vai também a Lagos (entre 9 e 11 de fevereiro), a Coimbra (14 e 15 de fevereiro) e ao Porto (de 2 a 23 de março).

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Nico é uma mulher germano-persa que não representa o padrão estético e sexual que estamos habituados a ver no cinema alemão em particular. O grupo que ataca Nico, pelo contrário, está mais próximo deste padrão, com os seus olhos e pele claras e corpos magros. Ter uma mulher como Sara Fazilat como protagonista não apenas reforça o multiculturalismo do povo alemão, como também ajuda a formar outro referencial estético. Poderia comentar um pouco sobre a cocriação desta personagem juntamente com Fazilat e Fancy Fabritz?

Sara Fazilat — que desempenha o papel principal em “Nico”, é também a produtora do filme. Porque começámos a estudar na Academia Alemã de Cinema e Televisão (DFFB) no mesmo ano, descobrimos cedo que queríamos fazer filmes juntas. Durante os anos, ela produziu quase todas as minhas curtas-metragens, e, desde o nosso primeiro filme, partilhámos o sonho de fazer uma longa-metragem na qual ela também é a protagonista — não só porque ela é uma atriz incrível, mas também porque sentimos a necessidade de mudar os papéis principais estereotipados na Alemanha.

A Alemanha tem muito mais rostos e perceções do que é atualmente visível. Queríamos trazer isso para “Nico” desde o início. Fazer um filme que fosse finalmente tão diverso quanto o nosso público. A diversidade, não apenas em termos de origem, mas também em termos de corpo e de sexualidade, deve ser representada da forma mais natural no panorama cinematográfico e televisivo alemão.

Durante a nossa luta com as nossas raiva e impotência sobre o facto de que, em 2021, o racismo e o sexismo ainda fazem parte da nossa vida quotidiana, começámos a escrever o guião em conjunto. Nesta fase, filmamos outra curta com Francy Fabritz como diretora de fotografia. Sara e eu soubemos imediatamente que Francy era perfeita para “Nico”. Assim, começámos com conversas profundas sobre a melhor forma de filmar um filme de tão baixo orçamento (7.000€).

Normalmente, o departamento de câmaras é o mais presente num set de filmagens. Tripés grandes, muitas lâmpadas, monitores e vários assistentes. Isto cria um espaço íntimo no qual é possível fazer muita coisa, mas também pode restringir a autenticidade de uma cena e das suas personagens. Após algumas sessões de teste, ficou claro para mim que o filme precisava de uma câmara que pudesse se mover livremente e trabalhar sem assistência. Francy Fabritz então elaborou comigo um conceito com o qual o projeto desejado poderia ser realmente realizado. Assim, ambas ficámos em frente à ação, sozinhas, podendo seguir os atores livremente e sem inibições.

Pensando na questão do trabalho reprodutivo, em que as mulheres são as principais responsáveis por cuidar do espaço doméstico e das pessoas, é interessante que o seu filme aborda o autocuidado de uma profissional que se dedica a cuidar dos outros. É também notável que são os seus próprios pacientes e o seu professor de karaté, todas pessoas mais velhas, que melhor percebem a sua mudança. A relação de confiança que se estabelece entre eles é bastante genuína e levanta a questão sobre quem cuida de quem cuida. Como chegou à escolha desta profissão para Nico e o que quis abordar na sua relação com os seus pacientes e o seu professor de karaté?

Nico é uma mulher que tem os dois pés no chão. Ela é positiva e muito autoconfiante. Uma mulher com quem se pode contar. Enquanto faz o seu trabalho como enfermeira, ela não só se preocupa com os seus pacientes, como também é amiga deles, é alguém que os ouve. A minha mãe fazia esse mesmo trabalho no passado. Ela levava-me frequentemente aos seus pacientes quando eu era bem pequena. Na realidade, não há tempo para uma enfermeira ser também amiga ou pelo menos ouvinte dos pacientes. As enfermeiras têm cerca de 15 minutos para um paciente antes de irem para o próximo. Especialmente em Berlim, há inúmeros idosos solitários que vivem quase anónimos. Queríamos mostrar este facto triste, incluindo-o no nosso filme.

As cenas com os pacientes de quem Nico cuida transmitem muita empatia. Brigitte e Fernandez não são atores profissionais. Poderia dizer-nos um pouco sobre como foi dirigi-los e por que razão optou por trabalhar com não atores nestes papéis específicos?

Não se tratava apenas do baixo orçamento, mas também de conseguirmos essa intimidade, que, em grande parte, filmamos completamente por nossa conta. A autenticidade foi o foco desde o início. Foi por isso que desenvolvemos algumas das cenas exclusivamente de modo dramatúrgico e muitas vezes deixámos de fora os diálogos. Durante as filmagens, podia aparecer expressões idiomáticas e diálogos que eu nunca teria imaginado desta forma.

O trabalho que normalmente faço com atores para preparar uma cena foi completamente diferente do que fiz neste caso. Alguém que não está habituado a abrir-se em frente de uma câmara e simplesmente soltar-se sem quaisquer ferramentas de trabalho, com as que a maioria dos atores está habituada a trabalhar, precisa de muito mais trabalho de confiança antes e depois de um dia de filmagem. Na parte da encenação, por exemplo, foi incrível trabalhar com não atores como Brigitte e Fernandez. Eles têm esta autenticidade que se encontra muito em Berlim-Neukölln, e que também permanece autêntico durante a filmagem. Foi emocionante experimentar.

Cada ator precisa de um par adequado para poder se desenvolver ao máximo. Assim, é claro que também trabalhámos com atores profissionais como, por exemplo, Sara Klimoska para o papel de Ronny. Após algumas audições e sessões de teste para encontrar a pessoa certa, a decisão ficou absolutamente clara sobre Sara Klimoska, que felizmente se encontrava em Berlim como uma Berlinale Talent. Ainda me lembro claramente do casting, daquele momento em que todos sabem: É isso! Isso encaixa!

Em resumo: Tudo o que aprendi sobre grandes sets de filmagem e muitos departamentos nos últimos anos tive de esquecer e confiar apenas na minha própria intuição.

Quando Nico é abordada pelos agressores, a mulher pergunta se Nico perdeu a sua voz. A cena da agressão não é mostrada explicitamente. Pelo contrário, conhecemos a brutalidade através do som do comboio, do chegar da noite e das luzes turvas da cidade. Parece ser uma postura feminista sua não reproduzir um tipo comum de violência voyeurista. Além disso, é um cliché hollywoodiano as mulheres lésbicas acabarem por ser violentamente agredidas ou mesmo mortas. Você também subverte isto ao fazer com que a última cena do filme seja Nico a aplicar um golpe de karaté enquanto grita ferozmente – ela recupera a sua voz perdida. Poderia comentar este cuidado que teve de não reproduzir a violência estereotipada contra as mulheres?

Para mim, o feminismo tem a ver com o respeito pelas diversas experiências, identidades, conhecimentos e potencialidades das mulheres, e com o esforço de capacitar todas as mulheres para exercerem os seus plenos direitos, seja qual for a sua aparência, venham elas de onde vierem e quaisquer que sejam as suas raízes. É por isso que critico o cinema clássico pela sua representação estereotipada de mulheres e homens.

Como cineasta, pretendo representar adequadamente a subjetividade feminina e o desejo feminino no ecrã, pois o cinema é mais do que um reflexo das relações sociais, já que constrói ativamente significados de diferença sexual e sexualidade. Trata-se também de aprender e compreender o modo como a desigualdade afeta mulheres e homens — e de recordar que estamos todos juntos nisto. A verdadeira igualdade não deixa ninguém para trás. Isso também significa, claro, não mostrar a imagem cliché: um homem a bater numa mulher. Esta igualdade foi muito importante para nós em qualquer parte do desenvolvimento do filme.

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