Oito anos depois do seu último projeto, Lee Chang-Dong regressa com “Em Chamas” (“Beoning”), o representante da Coreia do Sul na corrida ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2019.
Vagamente baseado no conto “Barn Burning”, de Haruki Mirakami, e também em peças de William Faulkner, “Em Chamas” é uma narrativa de menos tensão e mais reflexão, que tem como protagonista “um jovem Faulkner que vive no mundo de Murakami”, de acordo com Lee Chang-Dong.
Lee Jong-su (Ah-In Yoo) é um jovem que passa por problemas familiares: a sua mãe abandonou-o enquanto jovem e o seu pai encontra-se em tribunal devido ao seu temperamento explosivo. Assim, Jong-Su, licenciado, mas sem emprego permanente, caminha à margem do mundo, realizando as tarefas do dia-a-dia necessárias ao sustento próprio, até ser encontrado por Shin Hae-Mi (Jeon Jong-Seo), uma amiga de infância, que vê nele o candidato ideal para cuidar do seu gato (um gato de Schrödinger) enquanto ela viaja para África, numa procura faminta pela ”Grande Fome” e pela resposta pelo sentido da vida. Ao voltar de viagem, Hae-Mi abre a Jong-Su o mundo de Ben, um jovem rico, afável, calmíssimo e perturbador que atiça fogo ao relacionamento dos dois amigos.
“Em Chamas” poderá ou não envolver-se em torno de um possível assassinato – nada é certo. O thriller faz parte da carreira de Chang-Dong, mas aqui a essência da produção é a possibilidade de ter existido ou não um crime.
As três personagens são escamosas: a face de Ben (Steven Yeun) é benevolente e difícil de sofrer julgamento – é pacifista e afável, ao contrário de Jong-Su, apressado, inquieto e neurótico. Hae-Mi é sonhadora, uma miúda do campo, uma jovem social, o sonho de um homem e a efemeridade de outro.
Ah-In Yoo consegue transpor a génese da instabilidade emocional do protagonista e a ardência interna para o horizonte, quando, por exemplo, se masturba no quarto da sua amiga enquanto olha pela janela, até a sua obsessão tomar conta da narrativa.
As diferenças entre classes sociais são distintas, se bem que despontam de volta e meia no filme de forma subtil. Ben tem uma boa educação e dinheiro na carteira e pode realmente sair incólume dos crimes que comete, cujas vítimas são raparigas do interior, descartáveis, com o sonho de singrar na capital.
Jong-Su é escritor, mas não consegue começar a escrever o romance que poderá lançar a sua carreira – preocupa-se em ganhar dinheiro para o seu sustento, para ter uma certa qualidade mínima de vida, nunca na vida podendo competir com Ben, um jovem tão abastado – “Como é que se pode viver assim com aquela idade?”, questiona-se Jong-Su a dado momento.
Um homem com já tudo o que quer na vida tão jovem, farta-se do que tem e procura algo que o entretenha, que não o faça sentir-se um morto-vivo. Quando Ben fala de “queimar estufas”, fala de algo mais cruel. Ele sente a necessidade de “queimar”, incendiar vidas “vivas” e insaciáveis – é esse o seu combustível.
As questões políticas não são cruciais aqui, mas não deixam de ser relevantes: a cidade natal de Jong-Su é Paju, que faz fronteira com a Coreia do Norte, e ajuda à tensão da narrativa (não é por acaso que Donald Trump aparece a discursar numa televisão) – existem tensões distantes, subtis, presentes, que afetam todos num mundo globalizado.
A longa sobressai-se pela sua direção de arte, montagem e fotografia. Umas das cenas mais poderosas é a dança de Hae-Mi em frente ao pôr-do-sol, perto do muro que divide as coreias, poderoso e marcante. Usa sempre uma paleta de cores quentes, até nos momentos mais obscuros, mas sempre explosivos.
Chang-Dong alterna entre a câmara fixa e a câmara de mão, deixando-nos planos introspetivos com as dúvidas de cada um, e conduzindo vagarosamente a audiência por entre as chamas que culminam num grande incêndio.
Nuances políticas sobre a crise económica ecoam aqui e ali, afetando as personagens, mas é sobre as memórias e os seus truques que o filme se debruça. “Em Chamas” não ignora o lado mais incandescente das pessoas e das suas relações. O homem fez o fogo, e com ele morrerá.
O filme estreou em maio de 2018 em Cannes, levando para casa o Prémio FIPRESCI. Arrecadou outras 12 estatuetas: destaque para o prémio de Melhor Filme no Festival de Cinema Adana; os prémios de Melhor Realizador e Melhor Banda Sonora no Festival de Cinema Buil; o prémio de Melhor Filme no Grand Bell Awards da Coreia do Sul e o de Melhor Filme no Oslo Films from the South Festival.
Realização: Lee-Chang Dong
Argumento: Lee Chang-Dong, Oh Jung-Mi
Elenco: Yoo Ah-In, Jeon Jong-Seo, Steven Yeun
Coreia do Sul/2018 – Drama
Sinopse: Durante um dia normal de trabalho, Jong-Soo reencontra Hae-mi, uma amiga que vivia no mesmo bairro que ele. A jovem está com uma viagem marcada para o estrangeiro e pede para Jong-Soo cuidar do seu gato de estimação enquanto está longe. Hae-Mi volta para casa na companhia de Ben, um jovem misterioso que conheceu em África. No entanto, este último tem um passatempo peculiar.