Skip to content

Em “Praia Formosa”, Julia de Simone olha para a resistência às tentativas de apagamento histórico

JuliaDeSimone ©VivienGaumand menor 1 JuliaDeSimone ©VivienGaumand menor 2

A realizadora brasileira Julia de Simone lança a sua primeira longa-metragem ficcional nos cinemas portugueses, nesta quinta-feira (29).

“Praia Formosa” conta a história de Muanza, uma mulher africana, do Reino do Congo, que foi sequestrada e traficada para o Rio de Janeiro colonial. Certo dia, Muanza (interpretada por Lucília Raimundo) acorda no Rio de Janeiro contemporâneo, em uma casa totalmente em ruínas. Essa casa pertencia a Catarina (Maria D’Aires), uma mulher branca portuguesa que a escravizava.

Muanza está à procura de Kieza (Samira Carvalho), que é a sua “malunga”, uma palavra que, na filosofia bantu, designa aquela que partilha o mesmo barco. Ao conseguir escapar da casa colonial, Muanza anda pelas ruas da cidade nos dias atuais, percorrendo a região portuária que, ao longo de 200 anos, passou por diversas transformações urbanas.

Abaixo, leia a entrevista que a realizadora concedeu por email ao Cinema 7ª Arte:

banners maio 2025 2 3
Publicidade

Em “Praia Formosa”, você traz uma trama que se passa ao mesmo tempo no início do século 19 e nos dias de hoje na região portuária do Rio de Janeiro. Você já tinha abordado essa questão nos seus filmes anteriores, como em “Rapacidade”, mas qual foi o maior desafio na realização desta sua primeira longa ficcional?

“Praia Formosa” olha para os espaços da região portuária do Rio de Janeiro a partir de uma perspectiva não linear de tempo. O que nos exige, em primeiro lugar, uma outra maneira de percepção do mundo – desafio já bastante grande como ponto de partida. Em seguida, buscamos um caminho que traduzisse isso esteticamente para o cinema narrativo. Nesse sentido, o maior desafio foi perceber os diferentes elementos do filme – personagens, espaços, objetos, documentos, cenas – sem hierarquizá-los numa linha temporal evolutiva, promovendo encontros que pudessem aproximar e conectar diferentes temporalidades simultaneamente.  

A história da protagonista Muanza, uma mulher negra que foi sequestrada e traficada para o Brasil do Reino do Congo, é contada através das suas correspondências com a sua irmã de travessia Kieza, o que torna tudo mais íntimo e pessoal. Como surgiu essa ideia? E como foi feita a escalação das atrizes para essas personagens?

Muanza e Kieza são malungas – palavra de origem bantu que define uma relação de irmandade construída no trauma dos navios negreiros. São laços de afeto e familiaridade estabelecidos ao compartilhar essa experiência de morte. Narrativamente, um elo passível de cruzar os tempos e conectá-las em temporalidades distintas. Durante o processo de casting e pesquisa de elenco em Portugal, tivemos um encontro muito forte com a Lucília Raimundo. Sua capacidade de atuação num registro não realista e a força de sua presença e expressão foram os fundamentos para o registro performático de Muanza. Samira Carvalho, atriz de São Paulo que conhecemos no casting no Brasil, nos trouxe a delicadeza que modula a força e o movimento de Kieza. Cada uma com suas singularidades, conectadas pelo o que tem em comum, mas também por suas diferenças. 

PRINCIPAL 20231122 Still Praia Formosa 3 4
Cena de ‘Praia Formosa’/Divulgação

Desde 2012 você registra esses processos de urbanização que vem acontecendo há décadas na região portuária e, em “Praia Formosa”, você faz um paralelo entre a mulher branca portuguesa no Rio colonial e a promotora de um novo empreendimento que está sendo construído atualmente na cidade, ao colocar a atriz Maria d’Aires em ambos os papéis. Ou seja, acaba mostrando que algumas coisas persistem em se manter. O que mais a motivou a transformar essas tentativas de apagamento histórico, principalmente da área da “Pequena África”, em um filme de ficção?

A possibilidade de fabulação nos permitiu transitar com liberdade e fluidez entre tempos e espaços que, numa perspectiva hegemônica, encontram-se afastados. Nos permitiu propor uma outra maneira de encarar a disputa entre poder e resistência. Nos permitiu olhar para aquilo que resiste às tentativas de apagamento. Mas não acho que seja algo exclusivo da ficção. O que está em jogo aqui são outros modos de ver, sentir e pensar.

20231122 Still Praia Formosa 7 5
Cena de ‘Praia Formosa’/Divulgação

Você também apresenta o trabalho feito pela Mãe Celina de Xangô para reconhecer objetos africanos encontrados nas escavações do Cais do Valongo. Como você acha que esses temas relacionados ao legado da escravidão têm sido tratados especificamente no audiovisual brasileiro nos últimos anos?

Acho que o audiovisual brasileiro tem ampliado muito suas possibilidades de representação, sobretudo por uma diversidade cada vez maior entre cineastas e criadores de uma forma geral.  

Quais cineastas mulheres você mais admira e/ou qual foi a última produção que você viu feita por uma mulher ou por uma pessoa não-binária que realmente lhe emocionou?

Chantal Akerman, Agnés Varda, Raquel Gerber, Clarissa Campolina, Everlane Moraes, Ana Pi, Grace Passô, Renée Nader, Maya Da-rin, Mati Diop, Juliana Rojas…