A obra de Amácio Mazzaropi atravessa o imaginário popular brasileiro com a força de um arquétipo. Mas, diferentemente do que sugerem as análises superficiais ou cínicas sobre o seu cinema, não se trata apenas de um “matuto engraçado” que repetia fórmulas para agradar ao público do interior. A permanência do seu legado aponta noutra direcção: Mazzaropi encarna a possibilidade concreta de um cinema nacional-popular – uma categoria que, no Brasil, sempre viveu à margem do cânone e sob o desprezo da crítica dita especializada.
A jornalista Marcela Matos, ao escrever “Sai da Frente! – A Vida e a Obra de Mazzaropi”, enfrenta o desafio de historicizar esse percurso sem desconsiderar a sua complexidade. O livro não apenas reconstrói a trajectória do artista, como convida à revisão do que se entende por cultura de massas no Brasil. Afinal, como aceitar que o maior público do cinema brasileiro na década de 1970 tenha sido alcançado por um artista autodidacta, sem incentivos públicos, sem apoio crítico, sem festivais – e que, ainda assim, ousou erguer o seu próprio estúdio, a PAM Filmes, com distribuição independente e financiamento próprio? Mazzaropi não apenas sobreviveu ao sistema – criou o seu.

A leitura de Matos percorre os diferentes estágios da carreira de Mazzaropi: do circo à televisão, da rádio ao cinema. A autora não escreve com distanciamento académico, mas também evita o tom laudatório. A sua abordagem está atenta ao facto de que Mazzaropi, longe de ser um mero intérprete do interior, era um empresário astuto, um técnico incansável e um formulador de linguagem. Não um autor no sentido godardiano, mas no sentido gramsciano: um intelectual orgânico que soube articular as contradições do seu tempo numa estética acessível e funcional.
Essa chave é essencial: o Mazzaropi que emerge da biografia é um agente cultural. Compreendeu a lógica do mercado cinematográfico brasileiro quando muitos ainda discutiam como formar uma indústria. Ao rejeitar os moldes elitistas da Companhia Vera Cruz e assumir o controlo total da sua produção – escrevendo, realizando, actuando e distribuindo –, criou um circuito próprio que falava directamente ao povo, ignorando a mediação dos grandes centros urbanos e das instituições culturais.
A crítica do eixo Rio-São Paulo, ainda profundamente elitizada e colonizada por paradigmas europeus, reagiu com desdém. Mazzaropi era, afinal, um matuto. Um jeca. E o jeca, figura de múltiplas camadas simbólicas na cultura brasileira, é sempre um incómodo. Monteiro Lobato idealizou-o como símbolo da degeneração racial e cultural do Brasil rural. Mazzaropi ressignificou-o: o jeca, na sua obra, é resistência cómica ao processo de modernização excludente; é a metáfora do Brasil profundo diante da urbanização desenfreada.
Os seus filmes, vistos superficialmente como comédias ingénuas, albergam um subtexto muitas vezes corrosivo. Em “Jeca e seu Filho Preto” (1978), aborda o racismo com ironia desconcertante. Em “O Puritano da Rua Augusta” (1965), escancara a hipocrisia sexual da elite paulista. Em “O Corintiano” (1966), brinca com a religião, o futebol e os vícios de classe. Mazzaropi era um moralista? Talvez. Mas um moralista popular, que ironizava os códigos morais instituídos pelas classes dominantes.
O seu humor não era o do escracho tropicalista nem o da sátira moderna. Era um humor de fábula, de bordão, de repetição e cumplicidade. A estrutura narrativa dos seus filmes era previsível, mas essa previsibilidade cumpria uma função ritual. O público não esperava surpresas – esperava reencontros. A cada filme, a mesma personagem com novos disfarces, enfrentando as mesmas forças sociais com a mesma malandrice inofensiva. Mas essa repetição não é sintoma de estagnação: é, como aponta Matos, um gesto de fidelidade estética ao seu público.
A dimensão económica do seu cinema também é reveladora. Durante a década de 1970, os seus filmes lideraram as bilheteiras nacionais, mesmo competindo com a explosão da pornochanchada e com o prestígio do Cinema Novo. Enquanto os cineastas do chamado “cinema de autor” disputavam prémios em Cannes e Berlim, Mazzaropi construía um estúdio próprio em Taubaté, com laboratório, figurinos, locações e salas de exibição. Produzia um filme por ano, com lucro garantido. Era, sem dúvida, o empresário mais bem-sucedido do cinema nacional – e o mais ignorado pela sua intelligentsia.
Matos insere esse debate com delicadeza. Em vez de polemizar directamente, prefere reunir depoimentos, documentos, críticas e fragmentos de entrevistas em que o próprio Mazzaropi reconhece a distância entre o seu cinema e o olhar da crítica. “Faço filme para o povo”, dizia, sem qualquer afetação. Há aqui uma recusa consciente do refinamento artístico como medida de valor. O que importa, para ele, é o riso que ecoa da plateia, é o reconhecimento das personagens, é o retorno constante do público à sala escura.
Do ponto de vista formal, os filmes de Mazzaropi parecem simples. Mas essa simplicidade é estratégica. O uso de planos abertos, montagem linear, banda sonora diegética e diálogos dinâmicos cria um ritmo próprio – o tempo do interior. Há pouco espaço para metáforas ou experimentações visuais. O sentido está à superfície. E essa superfície é espelho: o ecrã devolve ao público a sua própria imagem, com as suas manias, os seus ditos populares, a sua roupa de domingo.
Revisitar a obra de Mazzaropi hoje é repensar o que se entende por cinema brasileiro. É questionar por que razão um artista que alcançou tamanha adesão popular é sistematicamente ausente das histórias oficiais do cinema. É perceber que o riso, em contextos como o nosso, nunca é apenas riso. É linguagem. É fuga. É resistência.
Marcela Matos, ao reunir vida e obra com rigor e afecto, recoloca Mazzaropi no lugar que lhe é de direito: não apenas o maior comediante do país, mas uma figura central na construção simbólica de um Brasil que ri para não chorar – mas que, ao rir, sobrevive.
Referência bibliográfica:
Matos, Marcela. Sai da Frente! – A Vida e a Obra de Mazzaropi. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010.