“Loving Highsmith“, o mais recente trabalho da realizadora helvética Eva Vitija, é uma obra de amor, mas também de muito labor.
É o resultado de um intenso e prolongado processo de investigação e pesquisa levado a cabo pela realizadora – embora não sem ajuda – e que trouxe para primeiro plano uma imagem diferenciada da escritora norte-americana Patricia Highsmith.
O documentário passou recentemente pelo Queer Lisboa e estreou a 3 de novembro na plataforma de streaming da Filmin, mas transporta mensagens e conteúdos que se prolongam no tempo.
O Cinema Sétima Arte esteve à conversa com a realizadora para saber mais e dar a conhecer motivações, bastidores e a visão de Eva Vitija sobre o seu próprio trabalho. Aqui fica a troca de impressões com a realizadora.
Como nasceu o seu interesse em documentar a vida de Patricia Highsmith?
Quando era pequena, tinha estado de férias de verão na aldeia onde Patricia Highsmith havia vivido e os meus pais disseram-me: “Aqui se encontra a viver esta famosa autora, sozinha com os seus gatos”.
Só muito mais tarde me lembrei de como isto me intrigou enquanto criança e pensei nisso durante muito tempo. Não penso que tenha sido esse o início do meu documentário, mas havia um estranho fascínio por Highsmith desde o início.
Quando descobri que o seu acervo se encontrava em Berna, nos Arquivos Literários Suíços, comecei a investigar e fui imediatamente puxada pelos seus textos não publicados, os seus blocos de notas e diários. Para meu espanto, não havia ainda nenhum documentário sobre uma das mais famosas autoras mulheres e comecei a procurar pessoas que poderiam participar – especialmente as suas ex-namoradas, amantes e família.
Estes eram quem estava ainda em falta nas muitas reportagens de televisão que existiam sobre Highsmith.
Os passos da investigação parecem ter sido muito extensivos, para ter reunido tanta informação. Conte-nos um pouco sobre o que envolveu encontrar os relacionamentos e família de Highsmith.
Não foi assim tão fácil encontrar toda a gente. Por vezes, simplesmente não sabia a morada ou em que cidade ou aldeia tinham vivido. A maioria desta geração não existe ainda na internet, apenas nas listas telefónicas locais. Por isso, temos de saber pelo menos onde vivem.
Por vezes, nem sequer tinha os seus nomes verdadeiros, como no caso de algumas das antigas namoradas, porque em algumas das boas biografias que já existiam, alguns dos nomes estavam sob anonimato. Ou tinham simplesmente casado depois de terem tido o relacionamento com Highsmith e mudado os seus nomes. Muitas lésbicas da geração de Patricia Highsmith eram casadas. Quando as encontrei, podia apenas ligar-lhes para o telefone fixo e visitá-las, para que pudessem ver quem queria saber todas aquelas coisas sobre elas.
A maior parte das vezes, estavam abertas à minha visita. Frequentemente, encontrei pessoas, amigos, vizinhos que me podiam dizer mais sobre para onde antigas namoradas se tinham mudado. Esta era uma parte da investigação: encontrar pessoas interessantes para participar no filme. A outra parte era, claro, decifrar os textos de Patricia Highsmith não publicados que estavam nos arquivos. Isto levou muitos meses. E fi-lo juntamente com uma assistente que me ajudou. Não era possível ler [os textos] na diagonal, por isso tivemos de decifrar frase a frase.
Sentimos que este documentário é um retrato feliz, uma vez que há pouca menção aos traços menos positivos normalmente associados à personalidade da escritora. Isto foi sempre intencional?
Sim, claro que foi intencional. Tinham muito a ver com o que havia descoberto na investigação. Com as pessoas que realmente conheceram Highsmith. Ou no seu diário privado relativamente sem filtros e nos textos dos cadernos de notas. A imagem pública de Highsmith é muito negativa e marcada por alguns episódios e comentários que são repetidos vezes sem conta e ensombram a perceção pública. Eu queria que o público tivesse uma imagem diferente de Highsmith, aquela que muitas pessoas que a conheceram tinham dela.
Isso não quer dizer que é preciso silenciar os aspetos negativos totalmente. Mas a questão, realmente, é: Quão relevantes são eles para a sua vida inteira?
É muito gratificante para mim que todos os que conheceram realmente Highsmith estejam muito contentes com o filme, porque acham que desenhei uma imagem dela muito mais adequada do que é comumente divulgado nos meios de comunicação social.
Ainda esta manhã recebi outro e-mail de uma amiga de Highsmith que viu o filme no cinema, em França, e o elogiou muitíssimo. No entanto, muitos jornalistas parecem certos de como Highsmith era suposto ter sido. Mas infelizmente, muitos deles não investigaram nada em primeira mão, simplesmente copiam uns dos outros ou de uma nova biografia que também está, infelizmente, muito mal investigada.
Como desenvolveu a história com base no material que tinha? Desde o início, tinha uma ideia clara que qual seria a linha narrativa ou isso mudou muito ao longo do processo?
Desde o início, era claro para mim que queria que o meu filme trouxesse para primeiro plano os lados de Highsmith que tinham estado ocultos até àquele momento e esses eram, certamente, a sua vida privada, a sua biografia amorosa. Agora, pode dizer-se, porque é que isso é relevante?
Mas para Highsmith é simplesmente muito relevante porque os temas da sua biografia amorosa tiveram uma enorme influência no seu trabalho desde muito cedo. Por exemplo, que muitas pessoas têm de viver com uma dupla identidade ou que o amor é algo associado à violência.
Ela própria experienciou que a sua forma de amar, nomeadamente o amor lésbico, era violentamente rejeitado pela sociedade e pela sua família. Claro, ela estava também predestinada a explorar os abismos da sociedade com o seu trabalho, já que ela própria sempre teve de manter uma espécie de fachada por detrás da qual outra identidade se escondia.
Há alguns passos ou escolhas de que se arrependa de ter tomado?
Penso que hoje teria conferido mais peso à questão do racismo no filme. Penso que é muito relevante saber que os avós de Highsmith, com quem teve uma relação próxima porque cresceu com eles até aos sete anos, vieram do Alabama, onde a família tinha uma clássica fazenda de algodão. Eles tinham escravos, claro. E isso deve ter tido uma forte influência na imagem que Patricia tinha do mundo.
Claro, ela rejeitou a escravatura ao longo da sua vida. Apesar de tudo, não conseguiu libertar-se completamente deste pensamento. Agora temos este aspeto explorado em maior profundidade no DVD, num capítulo de bónus extra.
Sente que ficou mais próxima entender a Patricia Highsmith a pessoa?
Penso que a minha extensiva investigação me permitiu aproximar-me de Patricia Highsmith de maneira diferente. Não posso dizer que entendo tudo acerca de Patricia Highsmith. Ela é uma pessoa muito complexa. Mas penso que me aproximei de certos aspetos da sua personalidade, sim.
Por exemplo, os temas do amor e da escrita, para mim, dominaram nos textos não publicados. E sempre me perguntei, ao longo da pesquisa: Qual dos dois era mais importante? No final, penso que fui capaz de responder: a escrita sempre esteve um pouco acima de tudo, para Highsmith. E tudo estava subordinado a isso. É esse o seu grande contributo: ela suportou muita negatividade na sua vida pessoal para ser a escritora que é e transformar estes problemas em grande literatura.
Como é que Gwendoline Christie se tornou na escolha para narrar a própria voz de Highsmith?
Quando estava a procurar uma voz para Highsmith, ouvi vozes de centenas de atrizes falantes de inglês. Quando ouvi a Gwendoline Christie, a voz tinha muito a ver com Highsmith, para mim. Ela tinha uma grande vulnerabilidade e abertura que eu também conhecia de Highsmith.
Nem sabia, ao início, que a voz pertencia a Gwendoline Christie e tive de pesquisar para saber quem era. Depois, claro, quando vi que ela era conhecida pelos papéis que também desafiavam os estereótipos de género clássicos, isso foi um bónus adicional.
As gravações com ela foram fantásticas. Ela é uma atriz de voz incrível e estava muito aberta às minhas sugestões. Na verdade, não tive de interferir muito, já que ela soa mais como si mesma do que uma cópia perfeita de Highsmith.
No seu próximo projeto, em que direção se vê a ir? Algum tema comum com os seus trabalhos anteriores ou uma direção completamente nova?
Estou a investigar várias ideias para o próximo filme, neste momento. São todas muito diferentes. Um dos temas está de novo mais privadamente ligado à minha própria vida, como o meu primeiro filme, “My Life As a Film” estava. Um outro [tema] não é muito simples, legalmente, por isso não quero agitar as águas ao revelar este tópico publicamente, por enquanto…
Mas todos eles me interessam tanto como Highsmith me interessou e estou entusiasmada com a próxima pesquisa. A pesquisa é provavelmente o que mais adoro no filme documental!