Chegam já amanhã aos ecrãs de cinema as curtas-metragens “Dia de Festa”, “Ruby” e “Cães que Ladram aos Pássaros”. Sofia Bost, Mariana Gaivão e Leonor Teles aceitaram falar com o Cinema Sétima Arte sobre os seus mais recentes filmes, que são apresentados em conjunto pela produtora Uma Pedra no Sapato.
Cinema Sétima Arte: Há muito que as curtas-metragens foram relegadas das salas de cinema comerciais para os festivais. Esta decisão de juntar três curtas numa única sessão é, por isso, bastante inovadora. O que vos parece este formato? O que é que trouxe aos vossos filmes?
Sofia Bost: É difícil juntar filmes que foram feitos de maneira completamente independente numa só sessão. Mas encontrando alguns pontos em comum é uma boa solução para trazer as curtas para o circuito comercial. Existem ligações entre os três filmes. A nível estético, por terem sido todos rodados em 16mm, o que hoje em dia é uma raridade. E a outro nível, que se prende com o ponto de vista dramático: vemos o mundo destes filmes através dos olhos da personagem principal. São mundos muito diferentes que mostram ambientes distintos dentro do nosso país: a cidade do Porto, um subúrbio de habitação social e um interior rural próximo da natureza.
Leonor Teles: Este formato é sobretudo um ato de resistência. Um ato de resistência em relação ao formato curto, e em relação à experiência coletiva de ver um filme no cinema. Esta sessão trouxe aos filmes a oportunidade de uma estreia comercial, que de outra maneira talvez não fosse possível, visto que a estreia comercial de curtas continua a ser um fenómeno bastante raro e muitas vezes relegado para os festivais.
C7A: Acham que se trata de uma experiência única, esporádica, ou acreditam que há espaço para explorar este tipo de formato de uma forma mais consistente?
Mariana Gaivão: A sala de cinema ainda é o local onde imagino o filme a ser vivido quando penso nos planos, no quadro, no som e na duração dos mesmos, mesmo sabendo que muito da sua vida passará por outros formatos. A dimensão da tela e o anonimato cúmplice da sala escura alteram a nossa disponibilidade para nos entregarmos aos filmes, e é para essa amplitude que trabalho, mesmo numa curta-metragem. Somos mais pacientes numa sala escura do que no nosso sofá. Ou seja, podemos ver os filmes em casa, mas não são os mesmos filmes, e nós não somos os mesmos a vê-los.
A minha primeira curta-metragem, “SOLO”, já tinha estreado numa sessão conjunta de três curtas. Parece-me um formato feliz, que permite encontros inesperados entre filmes, sem impor necessariamente uma hierarquia de duração que remeta a curta-metragem a uma introdução de um filme maior. Partirá dos distribuidores a coragem, como o foi aqui felizmente com a Pedra no Sapato, para arriscar nestes formatos menos tradicionais de ver cinema.
SB: O espaço depende da iniciativa de quem distribui e da abertura de quem exibe. Neste caso, a grande impulsionadora da sessão foi a Filipa Reis, que produziu o meu filme e o da Leonor. As curtas-metragens também são filmes – não têm menos valor artístico nem de entretenimento do que uma longa. E por ser tão difícil para um realizador chegar à longa em Portugal (porque só se produzem cerca de uma dúzia por ano) fazem-se muitas curtas de qualidade: que fazem um percurso fantástico nos festivais de cinema, mas depois nunca chegam a um público mais geral. Isto cria um desfasamento entre o público português e o cinema português mais jovem. Claro que para exibir este tipo de formato tem de haver um esforço de programação para juntar os filmes, e certamente é mais difícil fazer a comunicação e vender a sessão. Mas seria muito positivo se este esforço continuasse.
C7A: No caso da Mariana Gaivão e Leonor Teles, os vossos filmes são um híbrido de documentário e ficção. O que é que vos atrai neste formato e de que forma sentem que isso poderá acrescentar algo aos vossos filmes, que de outra forma não seria possível?
LT: Eu creio que há algo de muito especial quando trabalhamos com “pessoas reais”. Trabalhamos em conjunto com elas, sobre a história delas. Construímos o filme juntas e podemos elevar a sua história a um outro nível, podemos viver as suas emoções reais e partilhar uma experiência que de outra maneira não seria possível.
MG: Para mim, manter o processo permeável a mais do que as minhas intenções iniciais é essencial para lhes escapar. Quando trabalho com não-atores não procuro o seu naturalismo, mas antes uma interioridade que não consigo recriar apenas com premissas dramáticas. Um mistério qualquer entre mim, ou a minha intenção, e eles. Há um momento muito bonito quando filmamos e algo irrompe no plano, entre a nossa intenção e a forma como o mundo lhe resiste, algo novo e quase miraculoso, num gesto, num olhar, causado pelo nosso desejo, mas também independente dele. É como se víssemos o mundo dançar perante nós, nos seus movimentos mais íntimos, mais indizíveis. Vivo para esses momentos e, com sorte, para os conseguir partilhar.
C7A: Sofia Bost, as relações entre mães e filhas são sempre muito romantizadas, tanto no cinema, como na literatura. É raro termos esta perspetiva que trazes, esta denúncia que fazes de que é possível uma mãe não amar um filho – é ainda um tabu. Como é que te surgiu a ideia de abordar esta temática?
SB: O filme foi escrito pelo Tiago Bastos Capitão, que tinha sido meu colega na faculdade em Lisboa. Quando ele me propôs o argumento, reconheci logo temáticas que já me interessavam como realizadora e que já tinha começado a explorar na escola de cinema em Londres: a família, a maternidade, as relações entre pais e filhos. A escrita era forte, a protagonista parecia-me muito real e ao mesmo tempo desafiava os estereótipos de maternidade. É terreno muito rico para trabalhar. Mas mesmo assim não conseguia explicar porque é que estava tão determinada em fazer este filme e não outro. Agora, com alguma distância, consigo perceber que os anos em que trabalhei no filme foram aqueles em que comecei a pensar a sério em ter filhos. Se a maternidade seria para mim, que impacto teria na minha vida, se tinha a capacidade para ser uma boa mãe, e, acima de tudo, se queria realmente ter filhos por mim ou se estava a ceder a uma pressão da sociedade. E, claro, que o maior pesadelo era: e se decido ser mãe e depois me arrependo? Todos os meus medos e dúvidas acabaram por ser canalizados para o projeto. Li muita coisa sobre o assunto, incluindo um estudo sobre mulheres que admitem, anonimamente, arrependerem-se de terem sido mães. Toda a pesquisa que fiz para a realização do filme e para perceber a personagem principal era, na verdade, algo que me inquietava a nível pessoal e que precisava de resolver a nível interno. Mas na altura não reconheci isto.
C7A: Mariana Gaivão, as paisagens de Ruby são sem dúvida impressionantes e, sobretudo depois de dois meses em isolamento, dão imensa vontade de visitar este lugar. Fala-nos mais sobre esta aldeia e esta comunidade de estrangeiros, onde fica, como é que os encontraste?
MG: Passei os verões da minha infância na Serra da Lousã. Marcou-me muito o lado primitivo dessa natureza, a vastidão, os grandes incêndios, as noites de tempestades, a proteção e intimidade da casa contra o que está lá fora, além da vista. Desde pequena que me lembro também da comunidade de estrangeiros e dos seus filhos pequenos, já nascidos em Portugal, que brincavam no lado oposto do rio. Havia uma sensação de liberdade e energia imensas, diferentes da minha. Anos mais tarde, comecei a regressar, a fazer amigos, a perceber mais sobre o caminho de cada um, a procura de uma vida mais livre, as festas no meio da natureza, os lados mais sombrios por onde alguns enveredaram, a complexidade das suas escolhas. Sempre que regresso, respiro melhor, sinto-me sempre em casa.
C7A: Leonor Teles, o teu filme aborda a temática da gentrificação, no entanto escolheste focar-te na perspetiva do filho mais velho da família Gil. É uma escolha menos óbvia que nos deixa mais “protegidos” do que se tivéssemos entrado diretamente no ângulo da mãe, sobre quem recai todo o peso de sustentar a família, de encontrar um novo lar… Porque é que apostaste centrar a narrativa no filho?
LT: Porque não? O que é para um adolescente viver isto? Viver esta ideia de suspensão, de ficar sem casa? Sem os sítios e as pessoas que conhece? O Vicente supostamente estaria a curtir o verão sem preocupações, e de repente também tem de lidar com esta situação, tem os seus próprios sentimentos e incertezas, tem de ajudar a mãe e a família. Aqui não se trata de quem vai resolver “o problema” e encontrar um novo lar, mas sim o que é que acontece às pessoas que são envolvidas numa situação sobre a qual não têm responsabilidade nem controlo – recebem uma ordem de despejo e têm de sair. O Vicente também sofreu com isto, achei que era importante dar-lhe voz e espaço para se expressar. É como se esta situação o tivesse “forçado” a crescer mais depressa, a ganhar responsabilidade, a perceber que a vida não é um “mar de rosas”…
C7A: O título “Três Realizadoras Portuguesas” dá claramente destaque para o facto de se estarem a apresentar filmes no feminino. Não é, de resto, segredo que o mundo do cinema é um mundo dominado por homens, o que tem levado ao surgimento de movimentos como o conhecido #metoo, contra o assédio e a discriminação sexual, assim como movimentos para a igualdade de pagamento e de oportunidades. Nesse sentido, que outros filmes feitos por mulheres (portuguesas ou não) recomendam?
MG: Marcaram-me muito os filmes da Chantal Akerman, da Kelly Reichardt, da Lucrecia Martel. Embora pense que quando os vi não associei a uma categoria de género, eram apenas grandes filmes.
SB: De cinema português recomendo o “Tempo Comum” da Susana Nobre, que esteve no ano passado nas salas de cinema. De cinema internacional, dos últimos quatro anos: “O que Está por Vir”, da Mia Hansen-Love, “A Educadora de Infância”, da Sara Colangelo, “Atlantique”, da Mati Diop e “Toni Erdmann”, da Maren Ade. E o clássico de culto dos anos 70, “Girlfriends”, da Claudia Weil, que infelizmente é difícil de arranjar, mas que trilhou caminho e lançou as bases de tantos filmes e séries que vieram depois sobre a amizade entre mulheres.
LT: Andrea Arnold, Lucrecia Martel, Céline Sciamma…
C7A: Os três filmes incidem muito nas personagens femininas, que são todas personagens fortes, com garra: começa com Ruby, que tem sempre uma atitude muito desenvolta, muito independente, anda sozinha pela floresta sem medos; no filme de Leonor Teles, apesar de a personagem principal ser o filho mais velho, é a mãe quem toma as rédeas da família, sente-se a importância do matriarcado; já o filme de Sofia Bost é o mais extremo, onde não chega a ser apresentada uma única personagem masculina. Trata-se de um mero acaso, ou foi uma decisão que tomaram de forma consciente, esta de dar destaque e importância às personagens femininas?
MG: Parti inicialmente para o que me era próximo, talvez seja essa a ponte. Mas, na verdade, a personagem principal da curta, antes de ter nome, era já herdeira de várias impressões pessoais e foi sempre uma figura andrógina, em certos detalhes fluída no seu género. Um pouco como eu vivi a minha adolescência. A pessoa que mais tarde lhe trouxe corpo deu vida a essa premissa.
LT: No meu caso, e de uma forma muito natural, a Maria (a mãe) ganhou esse espaço no filme. Ela tem impacto porque é de facto assim e percebe-se muito bem a sua força. A Maria não precisa de ser protagonista para ressoar nas nossas cabeças.
SB: As escolhas que faço a nível criativo são sempre intuitivas e não premeditadas. Não são um acaso porque estão relacionadas com a minha história pessoal, com aquilo que conheço. Cresci rodeada de mulheres, mas não tenho uma agenda política ou feminista quando estou a fazer um filme. Isso são considerações que podem ser feitas pelo espectador, mas não fazem parte do meu impulso criador.
C7A: O que sentem que têm a dizer, enquanto mulheres realizadoras, que não foi dito ainda?
MG: Celebro a crescente paridade de oportunidades para as mulheres dentro do mundo do cinema, e sinto-me muito privilegiada por herdar essa possibilidade, consciente do longo caminho e das várias lutas envolvidas – mas dito isto, quando parto para o trabalho, não sinto que o meu género me defina enquanto pessoa que realiza.
SB: É importante que mais mulheres tenham oportunidade de realizar e que possam servir de “role model” a quem também tem essa ambição, mas a sente inacessível por percecionar o mundo do cinema como um mundo de homens. Só assim se quebra o ciclo. E é por isso que uma sessão comercial com o trabalho de realizadoras – e que é publicitada dessa forma – é tão importante. É essencial que exista igualdade de oportunidades. Mas, a nível artístico, recuso-me a falar de um “cinema feminino” que segrega as mulheres enquanto autoras; ou temas que só mulheres ou homens tenham legitimidade para abordar. O meu filme só tem personagens femininas e foi escrito por um homem. Como realizadora, e aqui não estou a falar de género, quero continuar a fazer o que quer que me interesse sem ter necessariamente de estabelecer uma relação com o facto de ser mulher.
LT: Tanta coisa, há imenso por explorar ainda. Quantas mulheres são protagonistas em filmes comparativamente aos homens? Está mais do que na hora de dar um lugar de destaque às mulheres. De lhes dar voz, tempo e espaço. De lhes dar esse lugar no cinema.