Madrugada. Nove de Agosto, de 1969. 10050 Cielo Drive, Los Angeles, Califórnia. São estas as coordenadas espaciotemporais que nos enviam até ao acontecimento trágico, que vem abalar o grande sentimento de libertação que se vivia na época. Sharon Tate, atriz em franca ascensão e esposa do cineasta polaco, Roman Polanksi, que contava com 8 meses de gravidez, é brutalmente assassinada, em sua casa, assim como quatro amigos que nessa madrugada lhe faziam companhia. É este acontecimento que leva Quentin Tarantino a querer mostrar-nos o espírito fulgurante e glamoroso de um mundo cinematográfico em mudanças; e mostra-nos, ainda, como o destino das forças odiantes que vieram manchar de sangue esses tempos onde beleza e liberdade andavam de mãos dadas, pode passar para dentro de uma película, como se aí a história pudesse, metaforicamente, ser redimida. Deus está morto, mas Tarantino vive.
A narrativa está estruturada em duas frentes, que acabam por se entrecruzar. De um lado, mergulhamos nos meandros dos estúdios de Hollywood e o ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) retrata uma indústria que vive o culminar daquele que foi, durante décadas, o símbolo máximo do cinema americano, o género western – que posteriormente passou a denominar-se como western clássico. Rick, tal como o género onde um dia prosperou, encontra-se numa fase de decadência, que o obriga a aceitar um papel menor, numa série western de baixo orçamento, intitulada Bounty Law. Absolutamente emparelhado a Rick, aparece o seu “duplo”, Cliff Booth (Brad Pitt). Nesta dupla, a velha expressão “unha e carne” ganha um sentido vivo: sendo Rick a unha, a exterioridade que aparece aos nossos olhos, que se quer cuidada, polida e envernizada; Cliff é a carne onde ela assenta, o tecido nervoso que ela esconde… lugar onde se alojará o sangue de uma vingança que nunca aconteceu. Numa constante autocomesiração a golpes de whiskey, em conjunto com os lapsos de memória onde ficam as suas deixas, Rick entra numa espiral de dúvidas sobre as suas capacidades e o futuro, agora incerto, da sua carreira; no entanto, após um encontro com o produtor Marvin Schwarz (Al Pacino), este sugere-lhe uma mudança na carreira: viajar para Roma para se dedicar a uma revitalização do western, onde, pela câmara de realizadores como Sérgio Leone ou Sergio Corbucci, começava a ganhar forma o western spaghetti. Do outro lado da trama, é retratada a trágica madrugada em 10050 Cielo Drive. Podemos dizer que numa metade dessa história, Tarantino submete-se ao real, e na outra, o real submete-se a Tarantino. Sharon Tate (Margot Robbie) aparece graciosa, sempre com o sorriso doce que a caracterizava, e com a inocência de quem vive em pleno o espírito de liberdade que nessa época andava no ar. Do lado oposto ao charme que emanava desta época do cinema, aparece Charles Manson (Damon Herriman) e o seu gangue, prontos para sugar o ar puro e estrangular essa respiração tão solta, que incomoda qualquer força odiante.
Tarantino pretende filmar o ódio, os seus movimentos, os seus refluxos, a sua moral. Para mim, e tomando esta lógica do ódio, o seu filme mais bem conseguido é “Os Oito Odiados”. Em todos os outros filmes, o ódio aparece já plasmado, algo devem-ódio; no seu oitavo filme, o que é filmado é o devir do ódio, o ódio arquetípico, sem nenhuma âncora moral que o legitime, onde até a vingança já se torna uma impossibilidade – e aqui percebemos a sua recepção mais fraca, gostamos de perceber onde está o bem e o mal, e ainda melhor, gostamos quando a tensão é moral e nos encontramos do lado dos bons. Pois, aqui não há espaço para essa divisão, há, antes, uma inexorável maldade que trabalha mesmo antes da moral; a moral é posterior e deveria nascer para fazer frente a essa força. Vemos o ódio; simplesmente, o seu fluir. Esse ódio é lastro, está já presente na primeira nota da genial «L’Ultima Diligenza Di Red Rock», de Ennio Morricone, como se aí se acendesse o rastilho para a explosão inevitável de uma carga de dinamite cheia de ódio. Mas, chega de apologias à ovelha negra de Tarantino… Em “Era Uma Vez em… Hollywood”, tal como em “Django Libertado” ou “Sacanas Sem Lei”, o ódio aparece já plasmado de um dos lados da história: o escravo que vira cowboy e que acaba com os seus opressores; ou a guerrilha que tira os escalpes aos nazis, montando um esquema para os encurralar numa sala de cinema, como se o gás aí os esperasse e bastasse a ignição de um fósforo para fazer essa doce combustão moral.
O contraponto do ódio em “Era uma vez em.. Hollywood” é o fulgor criativo daqueles que amam o cinema – já em “Sacanas Sem Lei”, o celulóide torna-se combustível, dentro de uma lógica de justiça cinéfila. É sempre este amor incondicional ao cinema que faz o contraponto do ódio, como se a sétima arte contivesse dentro de si uma capacidade de redenção que talvez não sejam tão visíveis em outras artes. Godard, ao filmarHistória(s) do cinema, mostra precisamente essa capacidade que o meio cinematográfico possui de conseguir trazer para dentro de si as outras artes: desde a pintura, passando pela literatura até à factualidade dos registos de vídeo. Com este anarquismo que existe dentro da tela, o cineasta francês mostra uma potência inusitadado medium cinematográfico, o convívio entre a ficção e o real, e seria esta pensatividade – como Rancière lhe chamaria – que justifica a recepção dualista deste filme: de um lado, os espectadores que defendem uma moral historicista e que falam em (ir)responsabilidades; do outro, aqueles que vêem a história como potência, como realidade desconexa das interpretações de causa-efeito que o cientificismo historicista lhe pretende atribuir. (Sobre este dualismo aconselho a leitura do texto de Diogo Ferreira: “Era uma vez em…Hollywood: Para acabar de vez com a verdade”).
O charme da década de 60 é retratado de uma forma brilhante pelo realizador, que mostra, mais uma vez, a sua mestria na forma como distribui todos os signos históricos pela tela. Todo esse mundo de signos, que se encontram espraiados nos corpos dos atores – o guarda-roupa, os penteados, os acessórios -, assim como nos cenários por onde se deslocam – os antigos sets western, a parafernália dos meios cinematográficos, ou as latas de cerveja e os enlatados – , dão forma não só a uma época histórica específica mas, tornam-se, ainda, uma potência visual que vivifica a nostalgia, dos que aí viveram, mas, principalmente, dos cinéfilos que viveram os filmes que se faziam nessa época. A personagem de DiCaprio é rica na expressividade corporal, no gesto: o simples e rápido saltar fora de uma carrinha, por cima de um dos seus taipais, torna-se um gesto de enorme estilo. Com o seu Óscar em “O Renascido”, Iñarritu mostrou que DiCaprio é um ator genial no gesto, no esgar facial, no expressar da dor ou da raiva. Tarantino aproveitou muito bem esta singularidade expressiva do ator, atribuindo a Brad Pitt a personagem ambígua, expressivamente mais contida, mas que intensifica o mistério sobre o seu passado e a sua identidade; algo brutal se esconde num corpo coberto de cicatrizes. Pitt é a psicologia das marcas, sem medo de provocar (o excesso de auto-estima de) Bruce Lee e até desafiá-lo para um duelo, onde temos uma primeira ideia das suas capacidades para as artes-marciais. É a Cliff quem calham as tarefas caseiras que Rick não consegue levar a cabo. Numa subida ao telhado da casa de Rick para consertar a antena, através do som da música que vem da casa ao lado, descobrimos que Sharon Tate e Rick são vizinhos. Descobrimos também uma Sharon Tate alegre, dançante, inocente. A questão da quantidade de falas da atriz que foi levantada revela apenas a contundente vulgaridade da própria questão. Se com a fala vulgariza-se o falante – palavras de Nietzsche –, então, nesta mesma lógica, Tarantino preocupou-se mais na forma como a atriz aparece do que naquilo que ela poderia dizer, é uma questão estilística antes de ser moral, uma questão cinematográfica antes de ser política:precisaria Margot Robbie de dizer algo quando tudo o que emana dela, sem dizer uma palavra, é beleza e graciosidade?
Charles Manson e a sua seita entram como força obnubiladora dessa energia que faz mover aqueles que criam, fazendo ressurgir o ódio dentro de tão bela paisagem cultural, que prometia felicidade – e essa promessa era já um estado de espírito. Aqueles que ousam desfazer essa paisagem não passam sem a mais brutal das sentenças dentro do tribunal simbólico que Tarantino monta dentro dos seus filmes. O cinema passa a ser força suprahistórica, entrando numa outra dimensão do tempo que não se submete à cronologia que ordena os acontecimentos. Sendo a arte do tempo por excelência, o cinema consegue a intempestividade, consegue quebrar essa leitura da história como continuum, como uma unidade coesa ou bloco inquebrável. É nesse reino, que Walter Benjamin chama de Tempo-do-Agora (Jetztzeit), em contraposição com o Passado-Presente–Futuro da história linear, que o cinema se move, é nesse tempo que os opressores desaparecem e as suas vítimas ressuscitam, e é aí que Tarantino mostra uma nova imagem de justiça, assim como uma nova imagem da história.
Como uma pequena mudança de perspectiva, conseguimos ver que Tarantino não faz revisionismos históricos, faz antes uma vidência histórica. Não é uma simples hermenêutica do passado, que vem preencher vazios, ambiguidades. Não existem ambiguidades na história, existem duas partes em luta, em que uma tem engolido a outra, e é isso que Tarantino mostra, essa luta, esse devir-ódio da humanidade ao longo dos tempos, em que persiste uma estranha “empatia para com os vencedores” – expressão benjaminiana. Tarantino não é certamente um desses seres empáticos para com os vitoriosos da história, daí saltar para uma outra dimensão onde se comece sempre uma redenção por vir. É isso o cinema de Tarantino: um cinema prenhe de porvir, onde a brutalidade é apenas uma regurgitação dos estilhaços da história, uma chuva de sangue simbólica que condensa o reverso da brutalidade real.
Quanto mais bem conseguido o retrato da beleza de uma época de florescimento criativo, mais brutal e hediondo nos aparecem os actos daqueles que se atreveram a manchá-lo de sangue; e por isso, mais culposos nos surgem os perpetradores. Talvez a justiça seja apenas uma questão de beleza…
Realização: Quentin Tarantino
Argumento: Quentin Tarantino
Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie
EUA/2019 – Drama/Comédia
Sinopse: Um ator apagado e o seu duplo embarcam numa odisseia para tentarem vingar na indústria cinematográfica de Hollywood. O ano é 1969 e Charles Manson lançou o terror em Los Angeles com a sua visão apocalíptica do “Helter Skelter” e o assassinato de Sharon Tate, mulher do realizador Roman Polanski…