O Cinema 7ª Arte dedica um pequeno especial ao clássico do cinema, “Nanook, O Esquimó” (1922), de Robert Flaherty, que celebra este ano 90 anos. O “Especial Nanook (90º Aniversário)” vai contar com dois artigos, sendo o primeiro “O berço do documentário cinematográfico” e o segundo “O legado Inuíte” (a publicar dia 16 de outubro).
Reconhecido como o primeiro documentário antropológico e como ode à persistência humana (e em particular das tribos Inuíte) face à crua indiferença da natureza que, “Nanuk, O Esquimó”, desde a sua exibição em 1922, questiona a objectividade do documentário cinematográfico. O filme de Robert Flaherty sobre as peripécias de Nanuk, um famoso caçador Inuíte, e da sua família, pela sobrevivência nos desertos árcticos, é sem dúvida, e muito por culpa de ser o primeiro do seu género, uma espécie de quimera exemplificativa do diálogo, muitas vezes evasivo, entre a fidelidade à realidade concreta do tema e a metodologia utilizada para o conseguir, que, frequentemente, recorre à encenação inerente a toda a linguagem cinematográfica, sendo o filme, ainda actualmente, ferozmente criticado, para bem ou para mal, pela sua misé en scéne parcial ao tema.
No entanto, esta idealização de uma linguagem “pura”, imaculada da encenação, do documentário cinematográfico, à maneira de um sistema de vigilância de um banco ou de uma estação de metro onde ninguém dá pela câmera ou quer, sequer, saber dela, parece-me erradamente infundamentada e, por ventura, um pouco redundante, por uma simples razão – a omnipresença da câmera. É simplesmente impossível falsear ou atenuar a sua presença esmagadora. E, como tal, partindo do momento em que ela se faz sentir em cena, ninguém, por mais capacidade de abstração que tenha, lhe é indiferente. Existirá sempre uma pequena dose de artifício, quer do “ator” que quer convencer, quer do cineasta que quer mostrar. São inúmeras as cenas em que a encenação está evidentemente presente: Nanuk, brincando carinhosamente com o filho, por vezes, até parece resistir lançar o olhar para a câmera, é talvez a mais icónica; A construção do iglo que Nanuk e a sua família constrõem é falseado devido ao tamanho da câmera, para filmar o seu interior. Mas tudo isto, contudo, não retira o mérito de Flaherty em registar, nas condições em que registou, uma cultura singular, alheia aos olhos do mundo. E se considerarmos ainda que Flaherty não era um cineasta, mas um homem imbuído no espírito da aventura, um explorador, chegando a trabalhar como prospector de minas no extremo norte do Canadá, e alguns anos antes de filmar Nanuk, tinha já filmado cerca de trinta mil metros de pelicula dessa remota região do mundo, que entretanto acabariam queimados acidentalmente pelo próprio, seria apenas natural a sua vontade de revelar e partilhar com o mundo as suas descobertas a jeito de uma narrativa próxima desse mesmo vigor romântico, e não meramente de um produto em estado bruto, turístico. Aliás, já no texto introdutório do filme, o realizador justifica o tratamento lírico que escolhe para o seu filme, apresentando Nanuk e a sua família como heróis de um espírito bravo e tenaz, na luta pela sobrevivência nas regióes inóspitas e implacáveis do círculo árctico.
Certamente, então, poder-se-ia dizer que “Nanuk, O Esquimó”, não é só o primeiro documentário cinematográfico da história do cinema, mas também o primeiro documentário híbrido, antecipando já a corrente dissolução das fronteiras entre a ficção e o documentário, se é que alguma vez essa barreira existiu. E, se “Nanuk, O Esquimó” sobreviveu durante quase um século como um documentário extraordinário, é talvez, devido a essa mesma encenação imbuída de lirismo que o torna quase um filme mítico da história do cinema.