O forte sentido comunitário trespassa forma e conteúdo da criação artística do realizador japonês Ryûsuke Hamaguchi, de tal modo que com a mesma atenção com que prepara a biografia das personagens dos seus filmes, e dá o devido tempo para que sejam criadas relações de confiança entre os actores ou não-actores que contracenam, também os argumentos são plenos de diálogos que enaltecem as redes de relações de que uma comunidade é feita. «Evil does not exist» (Aku Wa Sonzai Shina, 2023), o mais recente filme do realizador premiado com o Óscar de Melhor Filme Internacional da última edição, centra-se numa comunidade rural que é confrontada com a possibilidade de construção de um empreendimento turístico de ‘glamping’ (Glamorous Camping – campismo de luxo), o que acarretará consequências ecológicas.
Visto pelo olhar das personagens de uma menina (Ryô Nishikawa) e do seu pai (Hitoshi Omika), o modo de ser e de viver da comunidade está intrinsecamente implicado naquilo que o estado de preservação da Natureza possibilita, tanto que a sacralidade do solo da terra parece não ser inóspita à habitação humana, e, por conseguinte, constitui-se uma resistência à pegada nefasta que os turistas de Tóquio poderão deixar para trás num capricho turístico de experimentar a pacatez de uma escapadinha. Mas a pacatez da ruralidade esconde os perigos iminentes da violência da Natureza. Se já antes assistimos ao poder que tem a primeira vaca, tida como objecto de extorsão capitalista ao invés de ser fonte de alimento, recordando Kelly Reichardt, aqui regressamos à subtileza de compreender que a maldade é sempre manifestação da mão humana, e jamais se atribui aos movimentos violentos da vida selvagem.
A questão filosófica dostoievskiana acerca da existência do Mal parece atormentar ou fascinar o realizador japonês, na medida em que as histórias das personagens da sua filmografia são trespassadas por episódios de sofrimento, que apesar da sua aparente banalidade, não obtêm justificação moral para acontecerem, como sejam haver neste mundo pessoas que traem, mães que mal tratam, perdas e processos de luto, permanentes encontros e desencontros que levam à dor. A pretexto do desafio lançado por Eiko Ishibashi («Drive My Car», 2022), que primeiramente compõe a música clássica à espera de ser experienciada em filme, Hamaguchi dá-nos a resposta imediatamente no título: o mal não existe, no que concerne à Natureza, aí há somente violência, e o jogo moral e ético da maldade versus bondade é exclusivo do humano. Tais sinais do reino da violência no mundo natural poderão, porventura, configurar algum ambiente western ao filme (e confrontado com a questão, Hamaguchi responde que a ser assim, seria sempre um western inspirado em John Ford), na medida em que a crescente tensão até ao clímax que coincide com o final do filme, preenche-se de carcaças de veados, machados laminados, um corte na mão que antecede um estrangulamento, e planos que claramente distinguem a terra do céu.
Os longos planos que atentam os pormenores da paisagem e revelam a beleza natural, acabam por justificar as cenas de diálogos entre os habitantes locais e os exploradores imobiliários, diálogos que subscrevem o forte sentido comunitário que a população tem em defender aquilo que é comum, a saber, a qualidade de vida do mundo rural. Não obstante a demora a que o realizador japonês nos tem habituado em contemplar a paisagem, e os preciosos silêncios que nos ajudam a digerir a narrativa (e o peso do destino e do acaso), Hamaguchi recusa a ideia deste ser um filme lento, ao invés, afirma que “não há lentidão [na contemplação da natureza], porque há sempre algo a acontecer”, e que o essencial neste filme foi “valorizar a banda sonora e ter em atenção o ritmo da duração […], pois o silêncio dá o tempo necessário a absorver racional e emotivamente a narrativa”.
O filme desenrola-se numa crescente ambivalência, por um lado, é difícil justificar a existência do Mal num mundo criado a priori, por outro lado, perante a existência do Mal, é igualmente difícil delimitarmos os horizontes éticos da responsabilidade da acção humana no mundo. Dito por outras palavras: estará o mundo natural criado para tornar habitável a presença humana, ou será a técnica meio de criação humana que força a possibilidade do habitar neste mundo (?). Para além disso, o enredo do filme não fica pela discussão da ecologia humana, a ambivalência mais essencial diz respeito à comunidade e à individualidade. Ainda que a comunidade se una num esforço conjunto para encontrar Hana (Ryô Nishikawa), (e que nos recorda a busca por Lucía (Sofía Otero) em «20000 Espécies de Abelhas», 2023), e ainda que o princípio para uma sociedade sustentável considere a manutenção da Natureza como objecto da responsabilidade humana de todos (Hans Jonas, 1984), os planos que abrem e fecham o filme são testemunhos da particularidade com que cada um observa ao redor, focando a individualidade do olhar e do destino de uma menina.
O confesso admirador de clássicos americanos (John Cassavetes) e da Nouvelle Vague (Éric Rohmer), está à procura do seu caminho enquanto cineasta, sem se deixar contaminar pela fama conquistada em «Drive My Car», e tendo em conta que crê que o filme tem que ser sentido, e não tanto entendido, fica-nos a ressoar o desfecho de «Evil does not exist» de modo muito mais surpreendente do que compreensível. O filme tem estreia em Portugal, em Janeiro de 2024, num ciclo dedicado a Ryûsuke Hamaguchi, com a exibição de inéditos seus, anunciou o produtor Paulo Branco.