Se a realidade é um jogo e se jogar é indagar sobre o que é real ou não, então este “Existenz” é a própria manifestação de um cinema que olha sobre o dispositivo puramente digital e binário – sim ou não = verdadeiro ou falso – numa perspetiva pós-tecnológica e profundamente biológica: não há nele “função-espetáculo”, os efeitos visuais não são efeitos de e para si, mas extensões do efeito prático e manuseável, ou “forma-maquinal” informática pura. As imagens de síntese digital são minimais e cumulativas, mas há antes o corpo, a carne, a sexualidade, como modos e métodos tecnológicos, enquanto veículos indutores da passagem para um outro nível de realidade, virtualidade sobre virtualidade, na ascensão à hiper-realidade do simulacro total, falsidade verdadeira, uma verdade do engano, a dúvida do real, o irreal realizado.
A junção do tecnológico com o biológico e a função maior dada à biologia e à corporalidade orgânica como locomotora da sensualidade e do experienciar do virtual marcam a rutura que é essencial para David Cronenberg: a máquina dos sentidos é sobretudo o corpo e a vivência do corpo enquanto carne e sensação e prazer de si mesmo, até na indiferença e na impossibilidade de distingui-los entre realidade e ficção, original ou simulação.
Daí a importância do jogo como modo narrativo dessa hiper-realidade que é a estrutura ficcional que Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh) e Ted Pikul (Jude Law) experienciam ao longo do filme. Literalmente, os dois atravessam diversas linhas invisíveis, ecrãs não existentes que os levam a diferentes hiper-realidades que, na verdade, são hiperfilmes que se vão aprofundando em níveis ainda mais marcados e profundos de simulação.
As ligações entre hiperfilmes são feitas por fio biológico. Os UmbyCords são formas físicas de transparência virtual, são carne e tecnologia, embutidas por virtualidade e simulacro do corpo e ação. As cinemáticas de conexão são efetuadas por corte simples: a hiperligação é um hiper-olho. Quando Pikul move o olhar, está já num outro espaço, num outro hiperfilme.
A simulação é então forma de um irreal que se realiza no seu próprio simulacro. A necessidade de um original cessa de ter validade, já que a virtualidade toma forma de um adormecimento dentro do adormecimento, um transe imagético e sensorial que é de molde a aterrorizar e encantar simultaneamente.
O nível do temor: o irreal demasiado real, perfeitamente realizado, o hiperreal que é outro lugar, mas que é, imediatamente, “o lugar”, “o espaço”, o estado de consciência do “estar no real”, o simulacro que suplanta o original e que não necessita deste; o nível de encantamento: os jogadores controlam a lógica interna da hipernarrativa fílmica – os “filmes-jogo” dentro do “filme-jogo” – à medida que essa mesma lógica se vai construindo a si mesma e na qual estão imersos e da qual são perigosamente dependentes e com ela “inter-hiper-ligados”. Aí tornam-se importantes as questões do cenário, do argumento, do enredo. Têm de fugir, enganam, traem.
O encantamento com a narrativa e com a ondulação da narrativa é ainda uma que lhes traz uma dúvida maior: se a hiper-realidade se rompe, morrerão eles? Quando termina o jogo? Quando é que as personagens são já os agentes humanos reais e não os atores virtuais? Quando Allegra e Pikul se viram um contra o outro, a virtualidade é de tal modo enganadora que o cenário original já foi tão ultrapassado que pode ter sido, ele mesmo, um outro “cenário-simulacro”, um outro irreal realizado.
No fim, o jogo termina, mas não se encerra: os dois regressam ao ponto de partida, à sala onde Allegra conduzia um jogo de realidade virtual biotecnológica e em que Pikul era o responsável de Relações Públicas da empresa para a qual ela testava o jogo. Mas mesmo esse cenário é um ecrã hiper-real: os dois são agora outras personagens de um jogo que começou mesmo antes do filme “Existenz” se ter iniciado. O inicio do filme visto, a sua primeira cena era já um hiperfilme, uma sequência de um jogo que continuará após o corte para negro. E esse hiper- real é o filme enquanto irreal realizado pelo cineasta David Cronenberg: o seu filme sobre o virtual é um hiper-real que não se fecha, pois há um filme que está antes e depois dele e que é um que pode ser especulado e que, como tal, há de ser sempre uma virtualidade.
É então um temor e um encantamento que só podem ser sentidos para “cá do ecrã”, o simulacro visto é um que deixará sempre dúvidas – o cenário maior das personagens era ou não “real” para elas? – o que diz muito sobre o poder do cinema, por ser um hiperreal total: um virtual que, um piscar de olhos, nos leva a hiperespaços fantasmáticos, encantadoramente atemorizantes: onde é que poderíamos nós encontrar armas feitas de ossatura animal e que disparam dentes? Só mesmo nessa realidade virtual única que é o “cinema-simulação” de David Cronenberg.