Na multidão, nem todos se veem, apesar de olharem uns para os outros. A voracidade é rápida, o fragor é o da pressa, os vetores são os das linhas que os corpos desenham, quase em súbito choque ou em permanente desvio, para que não se aproximem mais do que é preciso, e para que, afinal, não se toquem. Assim começa Werner Herzog, nessa multitude de caminhos que se cruzam numa praça de Tóquio, pejada de pessoas nos seus ires e vires, oblívias umas às outras, nas pressas da pressa.
Dois corpos, no entanto, estão mais quietos que os outros, ainda que a diferente graus: uma jovem, Mahiro (Mahiro Manimoto), passa nervosamente pela praça, por duas vezes e em sentidos opostos, parando a espaços e olhando para um homem, Ishii Yuchi (Ishii Yuchi), esse sim a mais parada das corporalidades que – naquela enérgica confusão – passam pela praça e que parece estar ali para falar exatamente com ela. Quando, finalmente, Mahiro para, Yuchi aproxima-se dela e apresenta-se como o seu pai partido há muitos anos e que está ali para se reconectar com ela. A conversa entabulada é difícil, o contacto é frio.
Já no jardim próximo, Yuchi tenta explicar as razões da sua ausência. Mas Mahiro está ainda muito recolhida. Ela fotografa as flores que despontam de uma árvore. O pai elogia as suas fotografias. Ela alegra-se. Combinam encontrar-se novamente. Para mais se conhecerem. Talvez a aproximação seja possível. Melodrama familiar? Father-daughter flick? Não. Yuchi não é o pai de Mahiro, é sim o proprietário de uma empresa chamada “Family Romance, LLC”, e está a fazer o papel do pai desaparecido, contratado pela Mãe de Mahiro (Miki Fujimaki). Mais ainda, Ishii Yuchi está a interpretar um outro papel: o de ser ele próprio enquanto o real proprietário dessa empresa a fazer dele próprio, enquanto ator da personagem que tem o seu nome, é ele mesmo e é a personagem principal no filme de Herzog sobre o que é a solidão no meio da multidão, a tecnologização e a capitalização da ilusão e a veracidade das relações familiares no capitalismo contemporâneo, onde tudo se compra e consome, até mesmo a filiação e a aparência do amor parental.
O início do filme é mostrador de um modo de filmar que remete para o disjuntivo, para a aproximação à face, para o uso manual da câmara, para os esbranquiçados dos contrastes da exposição e que enfatizam uma encenação do tipo quasi-documental em ficção. No entanto, depressa Herzog nos leva para o (aparentemente) claro documentário: Yuchi a trabalhar como gerente e trabalhador-ator da sua empresa. Todo o filme vive dessa tensão entre a figuração dúplice de Yuchi, a um momento a atuar como o ator personificador que é, enquanto agente comercial, e a um outro a interpretar o ator do ator que está a pôr em causa como ficção da sua própria realidade, no ato de ficção do que é ou não é o real da sua existência e vivência.
A incerteza da sua configuração enquanto ser fílmico, decorre e rebate-se com a sua figuração como personagem em permanente refiguração construtiva, de contrato em contrato, de um dia para outro dia, da manhã para a tarde do seu horário laboral. Sendo ele sempre a personagem da sua própria pessoa e pessoa da sua incerta personagem, torna-se claro que ele é dúvida de si mesmo enquanto questionador, no ato, dos dois níveis da sua incerteza: o do Yuchi que é dirigido por Herzog para a construção de cenas dramáticas a partir da premissa ilusória da sua atividade – a de dramatizar incidências que poderiam ser reais na sua vida profissional, mas que são, no filme, ficções dessas potenciais ficções – e o Yuchi que se oferece ao seu realizador em atuação real dessa mesma atividade, mas já tingido de uma ficcionalidade segunda que age sobre a sua realidade. Toda a premissa dramática que sustenta a ficção-cinema do filme, a de que ele assume o contrato e de ser o pai ilusório de uma menina e que isso leva – pelo aprofundar da relação com ela e com a sua mãe – à confusão de papéis entre a personagem que cria e a pessoa-ficção que é na obra de ficção fílmica, define-o como figura ilusória da sua própria imagem incerta, ele é espelho inverso – é e não é ele mesmo – do perigo em constantemente vive: o de se apagar, propositadamente, nas personagens que vai criando e de nelas se fazer esquecer da pessoa que é. Um apagamento do qual só lhe é possível ser resgatado quando Herzog transforma o modo de registo para o puro documental, como na cena em que Yuchi visita o hotel de robôs e observa e experiência esses produtos que são também ficções do humano. Mas mesmo essa função documental está já marcada pela incerteza total da pessoa/personagem. Não é de todo óbvio que mais não seja uma outra construção cénica desenvolvida a partir do que poderia ser mais um dia da sua atividade empresarial.
Esse olhar-meta sobre a incerteza que se pode criar – e se cria efetivamente – entre aquele que atua e as personagens a que dá vida não importunam nem o que se apaga – Yuchi – nem o que faz bricolage com a função-cinema – Herzog – já que, e até ao fim, ambos prosseguem nesse tensionar dos estados de ficção que são dúbios registos documentais. Quando Yuchi chega a sua casa e ouve os seus filhos, no interior, e hesita entrar, faz isso ele porquê? Porque é essa a cena dramática acordada com Herzog e escrita por este para ele representar ou porque é ele mesmo, Yuchi, que já não consegue ser ele próprio, de tão imiscuído que está nas suas personagens, que não consegue entrar? Ou é ele a fazer de conta que é o Yuchi a fazer de conta que é o Yuchi a experienciar as problemáticas de diferenciar a personagem do filme da personagem que é na sua atividade?
No fim, a incerteza permanece. A linha entre a ficção e o documentário não ficou clara. E como tal, tanto Herzog como Yuchi ficarão satisfeitos. Fizeram cinema, criaram um filme singular e dúbio que, pela sua meta-forma, deixará a pensar: viu-se uma ficção ou um documentário? E nenhum problema haverá em que não se saiba responder.