O Cinema Sétima Arte conversou com Filipe Araújo, o realizador português, cujo mais recente filme documentário, “O Casarão“, estreia nas salas de cinema nacionais, esta quinta-feira, dia 18 de Novembro.
Já aqui demos conta da passagem do filme pelo Caminhos do Cinema Português, em ante-estreia, a 10 de Novembro.
“O Casarão” desvenda o papel que o antigo seminário dominicano de Aldeia Nova teve nas vidas dos muitos rapazes que passaram pelas suas salas e corredores, e o destino que agora poderá ter. Conta a sinopse oficial que [u]m velho casarão apodrece no coração de uma aldeia rasgada ao meio por uma estrada onde os carros já não param. Durante a ditadura, o edifício foi o mais progressista seminário católico português. António, vizinho da frente, cresceu e formou família à sua sombra. Desde a saída dos padres dominicanos, é o seu mais fiel caseiro — guardião dos fantasmas, memórias e corredores despidos de vida. Há anos abandonado, o antigo epicentro da terra poderá estar agora na mira de uma nova vida.
O edifício do “Casarão” é descrito como o maior edifício da Aldeia Nova, um seminário dominicano, habitado por diversos alunos durante o Estado Novo. Tratando-se de um documentário baseado em correspondência, e na obra de João Melo “Gente Feliz com Lágrimas”, como nos descreve o papel do trabalho de arquivo para a concretização deste filme?
O trabalho de recolha, compilação e edição de correspondência, notas, textos de diários, reflexões, fotografias, e até de um excerto da obra literária do João de Melo, também ex-seminarista de Aldeia Nova, foi uma parte importante do trabalho, mas apenas representa uma fatia do todo. Foi, sem dúvida, por aí que o processo começou, comigo motivado em construir esta personagem coletiva do seminarista, que pontua todo o corpo do filme. No entanto, quando cheguei à aldeia e comecei a gravar, O Casarão evoluiu muito organicamente para outra coisa. Sem aviso, transformou-se num diálogo entre o tempo presente e o passado. Uma “conversa” a partir de uma linha narrativa da atualidade, com o epicentro na aldeia envelhecida dos dias de hoje, em que seguimos o caseiro António ao longo do processo de venda, recuperação de memória e esventramento da casa. E aí, já é a lógica do documentário observacional, ainda que muito permeável à mise-en-scène, que passa a entrar em jogo.
Esse trabalho de arquivo baseou-se igualmente em memórias individuais, familiares e afectivas, ainda assim, podemos considerar que tal testemunho não deixa de evocar uma memória colectiva?
Absolutamente. Sem dúvida que é uma memória coletiva que evoca e de que, na verdade, se trata. Fui à procura do meu pai nos colegas, sabendo que ele sempre tivera os colegas dentro dele. Ainda assim, e, não obstante ter partido da sua correspondência, os textos têm proveniências diversas. São uma manta de retalhos cerzida a partir de registos de oito seminaristas — uns que eu já conhecia, outros que ainda não. No fundo, sumarizam momentos que foram ou poderiam ter sido vividos por qualquer rapaz do seminário de Aldeia Nova. Essa sempre foi a ideia. Desde o embate inicial com o casarão à construção de uma primeira amizade, da vida entre-muros à formação de uma consciência política, da chegada dos novos padres vanguardistas ao regresso à vida civil…
Estando os edifícios, como é o caso do “Casarão”, sujeitos à corrosão da passagem do tempo, poderá o Cinema ser um meio de preservar a memória?
Desde que sou pai e perdi o pai, a questão da memória tornou-se quase central na minha vida. Mais do que nunca, olho para o cinema como uma forma de condensar memória. No fundo, o que eu neste filme tento fazer com a câmara, é aquilo que o caseiro do seminário faz com as próprias mãos: tentar salvar o que resta do passado, numa luta injusta e sempre invencível contra o tempo.
Curiosamente, e ainda a propósito, quando o caseiro viu o filme na ante-estreia em Coimbra, confidenciou-me estar chocado por constatar como todos aqueles rapazes da aldeia que ali apareciam tinham deixado de ser miúdos: eram adultos! Ou, como outras pessoas mais velhas haviam, entretanto, desaparecido. Lembro-me de lhe ter respondido que o cinema é uma cápsula do tempo, e que o que ali fizéramos foi construir memória. O que ficou, ficará. Assim os suportes se conservem e não se tornem obsoletos…
Deseja comentar o recente incêndio da Cinemateca Brasileira?
Se tivesse acontecido por acidente, não deixaria de ser muito triste, doloroso e até chocante. Tendo em conta todos os antecedentes e contexto político no Brasil, foi um terrível e imperdoável crime público. E, já agora, uma boa metáfora, pelas piores razões, da fragilidade da memória. De tudo aquilo que sempre damos por adquirido.
Ao assistirmos a “O Casarão”, deparamo-nos com um conjunto de memórias materiais e imateriais. Memórias materiais consubstanciadas naquele edifício, e também memórias imateriais pelo que aquele edifício simbolizou para tantos seminaristas jovens que por lá passaram. De que modo é que o pensamento de Agostinho da Silva, citado no início do documentário, ilustra a paradoxalidade daquele espaço?
Em boa verdade, todo o filme gravita à volta de paradoxos. A começar pelo paradoxo da descoberta da liberdade dentro de muros por parte de um grupo de rapazes a prepararem-se para algo que não viriam a ser — afinal, quando o país mais fechado sobre si próprio se encontrava, este seminário funcionava como uma verdadeira ponte para o mundo.
Num período em que os extremos e os radicalismos dominam os discursos, acho essencial olharmos para o enorme intervalo de tons cinza que compreendem o espaço entre o branco e o negro. E, mais do que ninguém, estes ex-seminaristas, hoje avós, são um ótimo exemplo da possibilidade de sínteses felizes entre mundos aparentemente intocáveis. Souberam peneirar o melhor da experiência religiosa e da aventura civil, resultando em humanistas bem resolvidos com a vida.
O “Casarão” constituiu-se como espaço vanguardista, intercultural e com uma cultura democrática, não obstante a estrutura hierárquica da vida religiosa, e o regime político ditatorial à época. Considera que mesmo privados de liberdade, a criação artística é possível? (Recordamos aqui que o recém chumbado Orçamento do Estado português não chegou a atribuir 1% da verba para a Cultura).
Sempre se disse que a necessidade aguça o engenho, e basta olhar para cineastas como o iraniano Jafar Panahi, só para dar um exemplo, para provar que não há limites à criatividade humana (Jafar filmou Isto Não é um Filme em prisão domiciliária e proibido de filmar). Contudo, exceções extremas não podem nem devem ser consideradas a regra. Acho ridículo um país ter uma verba para a Cultura que começa por um zero…
O Filipe Araújo irá manter-se a par do futuro do “Casarão” (porventura o espaço de Turismo de Habitação referido)?
Se vou!… Estou muito curioso para perceber o que é que vão fazer com aquele espaço, sendo que, até agora, as notícias não são as mais animadoras. Lembremo-nos que o edifício já foi comprado há alguns anos e, até hoje, nada aconteceu. Na verdade, encontra-se a ser devolvido à natureza e por ela consumido… O que é muito triste para quem fica: ver um gigantesco (e ainda potencial) farol a remeter toda uma aldeia para a sombra.
E quais são os seus projectos de trabalho para o futuro?
Estou a trabalhar numa co-produção com Itália sobre as dores de crescimento comuns aos homens e aos projetos. Um filme sobre os sonhos e as desilusões da União Europeia a partir de um dos seus filhos. Um europeu em busca dos antigos colegas Erasmus, de quem pouco ou nada sabe desde a viragem do milénio. De todos, é o meu projeto mais pessoal.
Quais são as suas referências/inspirações cinematográficas (sejam elas filmes ou realizadores)?
Sou muito eclético nos gostos, pelo que este tipo de perguntas se me torna sempre complicada. Respondo uma coisa hoje e amanhã estou arrependido, porque me esqueci de uma referência essencial, ou acordo virado para outro lado. Para facilitar, pego apenas em documentaristas para dizer que voltei recentemente à obra de Alan Berliner, precisamente pela centralidade da memória no seu corpo de trabalho, e que acabo de descobrir Ross McElwee, um documentarista precioso, único na forma como se consegue trabalhar enquanto objeto dos próprios filmes. Gosto também muito do Victor Erice. E, já que estamos por Espanha, revi, antes de partir para O Casarão o filme Trem de Sombras, de José Luis Guerin.
Pode deixar mais algum comentário, caso deseje.
Por favor, venham às salas! Apoiem o nosso cinema. Se soubessem o difícil que é estrear e manter um filme em cartaz…
O Cinema Sétima Arte agradece a disponibilidade do realizador e convida todos e todas a assistirem a “O Casarão“. “O Casarão” estreia nas salas nacionais a 18 de Novembro.