Com obras de estreantes e realizadores que retornam, o cinema português anda por todo lado em Berlim, espalhados pelas várias seções do certame alemão. Mas foi com By Flávio de Pedro Cabeleira nas curtas e Super Natural de Jorge Jácome no Fórum que a coisa pegou fogo de vez.
Já faz tempo que a Berlinale desenvolveu um relacionamento muito próximo com o cinema português. Esse vínculo, afetuoso e estreito, a cada ano traz descobertas que talvez não teriam chegado onde chegaram se não tivessem sido primeiro apadrinhados por Berlim. A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, melhor filme do ano para os leitores do Cinema7Arte, é o caso de sucesso mais recente. Mas também quando Portugal levou os ursos de Berlim por dois anos seguidos. Leonor Teles em 2016 pela curta Balada de um Batráquio e no ano seguinte Diogo Costa Amarante por Cidade Pequena.
Para nossa satisfação, Teles retorna em 2022 à Berlim, só que desta vez guiando a câmera precisa e meticulosa do fabuloso By Flávio, o filme de 27 minutos que compete pelo urso de ouro na seção de curtas. O filme foi realizado por Pedro Cabeleira que também fez a edição e o escreveu em co-autoria com Diogo S. Figueira e Ana Vilaça, a grande atriz que dá corpo à protagonista Márcia.
Márcia é uma jovem mãe solteira que divide o seu tempo entre o filho Flávio, o trabalho aborrecido e uma certa obsessão em querer ser uma influencer. Até que um dia consegue chamar a atenção de um rapper famoso pelo Instagram e o rapaz acaba por lhe propor um encontro. Só que na noite em que Márcia tem de encontrar o famoso, ninguém está disponível para cuidar do pequeno Flávio e então Márcia parte à procura de resolver o seu dilema, que acaba por desembocar num desfecho inesperado.
O filme de Cabeleira investiga o culto às celebridades, a obsessão com a própria imagem e em como o corpo feminino é explorado como objeto de um imaginário masculino e misógino. Junto com o extraordinário Starfuckers do americano Antonio Marziale, By Flávio compõe a melhor dupla de curtas da competição deste ano.
Um maracujá que grita em Berlim, ou o alien de Jorge Jácome chamado Super Natural
Mas foi na seção paralela Fórum, que normalmente é lugar dos filmes mais experimentais e ousados da Berlinale, que encontramos um pequeno alien também vindo de Portugal, o estranho e hipnótico Super Natural de Jorge Jácome. As possibilidades do projeto de Jácome são tão grandes que chamar-lhe “filme” chega a parecer um bocado inapropriado. Super Natural é meio que um primo não muito distante do Coma de Bertrand Bonello, que sacudiu a competição paralela Encounters no fim de semana.
Na página oficial do Teatro Praga, de onde saiu o projeto em colaboração com o realizador e a companhia de dança Dançando com a Diferença, Super Natural é descrito como um “filme performativo que fala e escuta, que interfere e procura quem está à sua frente”. É mais ou menos isso. O filme foi produzido como parte de um espetáculo-instalação mas acabou indo parar ao grande ecrã, onde o seu efeito fascinante começou a se espalhar pelo boca-a-boca em Berlim.
A Berlinale aliás, já foi casa do realizador, que em 2019 trouxe à Berlim o seu Past Perfect na competição de curtas. O filme anterior parecia um prelúdio do que Jácome conseguiu agora com Super Natural, também na forma como abre o filme a convidar o espectador a explorar o desconhecido.
Mas é difícil explicar direito o que é Super Natural, visto que o seu abstracionismo está mais próximo de uma performance visual de facto e não segue uma estrutura que podemos chamar linear. Filmado nas paisagens da ilha da Madeira, o filme é um apanhado de videoclipes musicais, efeitos da natureza, animação, jovens performers com necessidades especiais e um maracujá à beira de um ataque de nervos. À primeira vista, isso tudo parece um caldeirão absurdo de referências aleatórias mas, nas mãos de Jácome, a viagem aqui nunca perde o controle e o sentido da narrativa.
E isso tudo nos trouxe à memória os filmes do video artist James Richards, nomeado ao prestigiado Turner Prize em 2014 e que no ano seguinte foi à Biennale de Veneza representando sua terra natal, o País de Galês, com Music For the Gift. Um dos filmes de Richards que mais próximo está de Super Natural é o curta Radio At Night, que foi desenvolvido como uma resposta ao legado da obra e influência do realizador e artista Derek Jarman.
Os dois filmes se assemelham não só pela forma como tentam elaborar uma narrativa, que é abstrata porém sequenciada, mas também no modo em que se combina sons, diferentes formas e texturas, para assim retratar os fragmentos de uma realidade imaginada saturada de tecnologia. É também o resultado de como essa tecnologia se funde em movimentos bizarros com a natureza. Um dos momentos mais emblemáticos (e hilários) do filme de Jácome envolve uma monstera e um telemóvel, que juntos se conectam de uma forma que é ao mesmo tempo completamente estranha e assustadoramente familiar.
Mas Super Natural não se organiza apenas da influência de outros territórios das artes visuais, é muito mais que isso. É uma espécie de performance que nos convida a explorar um universo inabitável que desafia os significados e decodifica as formas. E por isso mesmo, é um filme que é consciente de si próprio, e de como pode ser intimidante e desafiador. Tanto é que no seus momentos iniciais, assim como Bonello se dirigia à filha na introdução de Coma, pede a total confiança de quem o vê, para que o espectador deixe-se guiar numa experiência que às vezes pode parecer estranha aos sentidos, mas absolutamente única e recompensadora para quem se deixa levar por ela.