Sou uma cinéfila apaixonada ao mesmo tempo que aprecio a capacidade reflexiva sobre os instantes de belo que nos surgem. Numa fase mundialmente histórica em que se (auto)impõem sucessivas fases de confinamento, aproveitemos filmes como “First Cow” (2019, Kelly Reichardt) para exercitar a nossa contemplação. Ainda que anos atípicos como o de 2020 se caracterizem por uma tentativa de cancelamento da cultura, o olhar cinematográfico não cessa, e mesmo em tempos horrendos (ou até especialmente nesses tempos) o belo permanece-aí.
Baseado na obra “The Half-Life”, de Jonathan Raymond (2004), a adaptação cinematográfica distancia-se da narrativa literária focada em paralelo em dois grupos de amigos separados por um século, ao invés disso, foca-se exclusivamente na amizade entre King-Lu (Orion Lee) e Cookie (John Magaro).
O recorrente travelling da realizadora Kelly Reichardt em que surge o movimento de câmara que acompanha o fluir do rio da vila de Oregon, em 1820, conduz-nos à possibilidade de reconhecer o carácter transitório da passagem do tempo da vida, na certeza de que, como afirma Heraclito, jamais nos banharemos duas vezes na mesma água. Nós, humanos, jamais seremos os mesmos ao passarmos duas vezes pelo mesmo espaço; o espaço, contudo, permanece lá sacralizado por uma espiritualidade maior que governa as leis da natureza.
Se, por um lado, o movimento de câmara que acompanha a fluidez e a passagem da natureza substancial adequa-se a traduzir a realidade da natureza, por outro lado, a serenidade e demora contemplativas que nele se inscreve dá-nos a sensação, a nós humanos, de estarmos perante um número considerável de hierofanias, isto é, de manifestações do sagrado que se mostram. Ao domínio do natural pertencem o rio, a terra, e a vaca, partes integrantes do nosso mundo «profano». Contudo, experienciá-los enquanto manifestações do sagrado irá torná-los numa outra coisa, que os distingue das demais, ainda que permaneçam os mesmos.
Assim, quando Cookie e King-Lu se apercebem da existência de uma única vaca na vila, esta não será mais um qualquer objecto inserido na moldura da floresta, a primeira vaca que aparece na vila ser-lhes-á a possibilidade de comunhão com o sagrado. Desta comunhão é característica o diálogo que Cookie estabelece com a vaca no tempo que passa a ordenha-la. Cookie sabe que alimentar-se daquele leite é o que dá alimento aos seus sonhos. Contrariamente, o chefe da vila (Toby Jones), encarregue por mandar trazer aquela primeira vaca para a vila, vê nela o fenómeno orgânico que lhe permitirá a reputação de poder e de império por que tanto anseia, e, como tal, qualquer substância natural encontra-se à sua disposição para domínio e cálculo. No entanto, aquilo que os seres desprovidos de experiência espiritual não são capazes de calcular, é o potencial profanador que os sonhadores carregam dentro de si. Em nome de levar avante o sonho que Cookie e King-Lu constroem à medida que a relação de amizade entre ambos se fortalece, eles vão ser capazes de profanar os planos da autoridade máxima da vila, afinal, é por causa deles que a vaca não está a servir o seu propósito no entender do chefe. Para os seres desprovidos de experiência espiritual, a dessacralização do mundo reside na redução dos fenómenos naturais a propriedade privada, cujo proveito próprio é meio de lucro e de exploração alheia.
Acontece que, para aqueles cujo sonho é dar alimento aos prazeres da vida, como a delícia de bolachas que Cookie é capaz de cozinhar, a natureza não é reservatório da manufacturação da nossa vontade de poder. Para aqueles cuja realidade se mantém sacralizada, o espírito humano comunga dos fenómenos naturais. Desse modo, o ingrediente secreto e misterioso das bolachas e que jamais poderá ser revelado, sob pena da dupla de amigos ser acusada de usurpação de um bem que, sendo natural, deveria ser sempre público, é, também, o mistério da natureza que permanece em ocultamento e cuja linguagem divina não podemos decifrar.
Não se trata, por conseguinte, de atribuirmos aos instrumentos de que dispomos o benefício ou prejuízo na relação que assumimos com o mundo, trata-se, essencialmente, de preservar o mistério da natureza substancial do mundo, o mesmo mistério presente nos dois corpos que se descobrem enterrados na terra. A terra não julga o status daqueles que acolhe nas suas profundezas, da mesma maneira que a amizade não escolhe senão afinidades inorgânicas para se conjugar. É este o espírito sacralizado das raízes, as da terra, e as da amizade.
A consistência dos sonhos de Cookie e de King-Lu, e que preenche a amizade entre ambos, reflecte uma técnica do acaso, isto é, a natureza é palco da construção destes sonhos, mas em profunda adequação com a ordem cósmica, de tal modo que não se dá uma desnaturalização. No fundo, a força desta amizade reside em não considerar a técnica meio de um empreendedorismo selvagem que traga a fortuna, ou traga o domínio e até a decifração daquilo que a realidade é. É justamente esta vontade de domínio e de decifração a que se apodera dos chefes que são detentores dos recursos naturais e das forças de trabalho humano, na tentativa de constituir os meios de produção ilimitados no tempo e no espaço. Contudo, o ser inscreve-se na natureza com distinção, a saber, o humano delimita-se, em finitude, no tempo e no espaço e, para ele, nada será eterno. Portanto, a condição humana é sempre moldura para a imensidão do desconhecido do que está-aí, à semelhança dos enquadramentos dentro de enquadramentos que a realizadora nos dá sempre que observamos o comportamento e a conversa entre os dois amigos. Ainda que a sua história possa ser contada e perdure no tempo e no espaço, aquilo que conhecemos é, de facto, uma moldura da realidade, não se justificando a pretensão de que possamos, alguma vez, abarcar o mundo por inteiro.
Afirma-se que aquilo que nos distingue dos demais é a consciência que os humanos têm da existência do universo, mas talvez seja, acima de tudo, a consciência das relações humanas que estabelecemos com e dentro do universo, que ora podem ser um laço sagrado como testemunha esta história de amizade, ora podem ser uma destruição profana.
Podemos tender a interpretar a história da combinação metafísica entre o Homem e o Mundo como meio de habitar de forma resistente. Se assim for, os primórdios dar-nos-ão a inconsciência da nossa capacidade técnica e a manutenção da leitura contemplativa e não-dominadora da natureza, ao passo que a inegável evolução e progresso da técnica desembocam-nos na actualidade marcadamente tecnológica. A beleza e genialidade acontecem quando retratamos as questões radicais do género humano como abstractas e universais e, portanto, sem data. O filme “First Cow” é datado mas todos os alertas de uma natureza humana corrompida pela sede de dominar o espaço da natureza estão lá presentes como se de hoje se tratasse. Assim, ainda que se observe uma evolução e progresso técnicos, desde sempre que as formas de habitar se pautam pela tensão entre o Mundo ser para o Homem um produto da sua técnica, ou o Homem ter de adaptar a sua técnica ao movimento presente na natureza e às suas finalidades.