Quanto vale um corpo? E, mais ainda, no nosso contemporâneo capitalista, quanto vale um corpo negro/black body? Vale o valor-mudo de uma ficha de bingo levantada em resposta ao lançamento igualmente mudo de um valor calado, literalmente significado pelo contar de dedos e mãos. Quanto vale um black cinema? E, mais ainda, quanto vale um black horror cinema? Vale por ser uma política de possível catarse, uma que, nesta nossa contemporaneidade, se permita a uma ideia de resolução (artística) das relações profundamente desniveladas entre a corpo branco/white body e o corpo negro/black body. Como? Pelo uso do medo, por uma variação-desvio da forma dramática simples para a forma dramática estendida, tomando o thriller/terror psicológico como base de género (mas para lá desse mesmo género normalizado) para produzir o comentário social e a concomitante, plausível e possível catarse social.
Na impossibilidade histórica – porque demasiado engrenhado, batido, sangrado e não refazível-reversível – de um resolver igualitário das tensões e das eliminações-supressões do corpo negro/black body pelo corpo branco/white body, talvez a forma mais extremada (porque se expandindo para além do típico drama racial) de um género mais extremo possa ser de função mais comentadora e logo reinstrutora e renquadradora. Essa parece ser a política de Jordan Peele, expressa num cinema de comentário, mas também materializada num cinema visceral, sempre tenso, sempre a viver o incómodo de uma estranheza que reverbera pelos corpos e que os faz tremer, sobressaltar e reagir/lutar.
O medo é insuspeito, é orgânico, não há medos diferentes para corpos diferentes, há só corpos amedrontados. No medo, não há racialidade. Quem experiência um filme de medo, não o sente na forma própria de um ser ou morfologia pré-definida, mas sim na biologia igualitária de um corpo unitário: ser-se humano é também sentir o medo enquanto ser vivo que se assusta e sobressalta. O susto é cego, vale sempre pelo seu uso real: o de desequilibrar e fazer vacilar. Mas o que está dentro do ecrã deste filme de medo e o que vai para lá do terrorífico – por definição, não-classista e não-racial – é o comentário acerca desse mesmo sistema classista e racial que perfaz o seu tema: porque é que o corpo branco/white body se pretende a ser ainda subjugador do corpo negro/black body? Talvez o medo assim seja mais questionador e argumentativo do que o habitual filme dramático. No medo e pelo medo.
Claro é que a mise en scène de Jordan Peele é sempre torcionária: ir por aqui para levar para ali. Ainda que a sua câmara tenha sempre latente uma permanente, alta e cortante tensão, o filme começa por se situar dentro do sub-sub-género do “boy meets girl’s parents”. Um engano. A mesma câmara, enquanto instrumento desse tenso, depressa encaminha o filme para o thriller inquietante, impregnado de uma mais básica tensão sócio- económico-racial: a diferenciação entre os abastados e os plebeus, mesmo quando os desníveis de rendimento não a objetivam realmente. O que Chris Washington (Daniel Kaluuya) encontra na casa dos pais de Rose Armitage (Allison Williams) é algo que remete da mais pura estranheza classista: o discurso tenso de aceitação da diferença racial como a assunção de uma igualdade que não se questiona, mas que é tão só o efeito de ser a polidez desafetada do altivos. A casa é perfeita, é rica, os pais de Rose são esclarecidos (!): Dean Armitage (Bradley Whitford) é neurocirurgião e Missy Armitage (Catherine Keener) é psiquiatra. Profissões da mente e do “mexer” na mente (bem a propósito). Somente Jeremy Armitage (Caleb Landry Jones) já se percebe como a fisicalidade pré-violenta de um comportamento marcadamente estranho, mas não inesperado enquanto vindo de um filho privilegiado da classe abastada. Certo é que a camada polida depressa se desmascara pelo fato inexplicável – quanto mais se o tenta explicar – dos criados/encarregados serem efetivamente negros/blacks, na fina ironia de que aquilo que sempre se aparenta, sempre o é: o véu ténue de um racismo revestido de equalização do outro racial, pela absorção económico-social e respetivo remetimento a uma escala/classe social inferior.
A forma torcionária de Jordan Peele ainda mais se aprofunda: tanto Georgina (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson) mais não são do que veículos, corpos tomados pelos cérebros dos avós de Rose. O corpo negro/black body mais não é do que uma commoditie comercial (Chris é leiloado para ser utilizado como casulo da perpetuação da vida de Jim Hudson (Stephen Root), um branco que paga milhões pelo seu corpo). Tudo é uma mentira que a câmara, desde o início, quis revelar, com os seus travellings subjetivos, o seu olhar pelo olhar das personagens, a sua queda como figura do afundamento, do apequenamento, da invasão do corpo e da superiorização dos sempre acima. Da tensão para a explosão: Chris toma força de homem-ação, o reflexivo dá lugar ao corpo vingativo, que espeta, bate e violenta na defesa do corpo negro/black body. A violência de classe não deixa de existir, é-lhe uma necessidade, a única forma de tomada de posição. A clínica disfarçada de família branca e rica sangra. O hipnotismo (o engano do capital diferenciador e da classe branca) deixa de funcionar: Chris não ouve, tem os ouvidos tapados. Age. Luta pelo seu corpo. Assume o corpo seu, os dos seus, o black body. No fim, até a angélica e falsa Rose é varada e sangrada.
O filme acaba como um “buddy movie”: Rod Williams (Lil Rel Howery), vem salvar e buscar o seu Chris. Nada mau, depois de toda a tensão e todo o terror.