“Foge” (2017) é a primeira longa-metragem de Jordan Peele. O filme usa o género como máscara, que vem criar um efeito de distanciamento no espectador, através do choque entre a heterogeneidade da forma e do conteúdo. Esta mesma forma foi adoptada por Dan Gilroy, no seu filme «Repórter na Noite» (2014), que fez notar como o uso da forma do género pode intensificar a visibilidade do conteúdo e despertar o nosso espírito crítico para algumas questões sociais essenciais.
«Foge» conta a história de um casal de namorados – ele afro-americano, ela caucasiana -, que decidem ir passar um fim-de-semana a casa dos pais dela, a fim de Chris (Daniel Kaluuya) ser apresentado à família, mas esta começa a mostrar alguns comportamentos bastante estranhos.
Ao entrar na mansão da abastada família de Rose (Allison Williams), Chris começa a perceber uma estranha distância entre o discurso multicultural do pai de Rose (Bradley Whitford), que “votaria novamente em Obama, se pudesse”, e a presença de dois criados negros, que apresentam comportamentos e discursos que parecem advir de uma mente que foi, em algum momento, esvaziada e controlada. Mas, a fachada multicultural fica ainda mais clara quando chegam à mansão várias pessoas do círculo de amigos da família Armitage, com o mesmo fulgor de capital. Todos parecem apreciar e acolher Chris, dizendo o quanto apreciam Tiger Woods – que, para eles, é um negro tolerado pelo simbolismo do desporto que pratica e, principalmente, por aquilo que possui, o que o faz pertencer, não a uma mesma humanidade, mas à mesma classe social. Afinal, parece que todas as narrativas de tolerância democrática não passam de uma máscara para que o mundo se globalize apenas na dimensão das mercadorias, pois, só assim se pode explicar porque mesmo juntos num mesmo espaço e participando das mesmas conversas, as pessoas continuem em mundos separados que nunca se tocam no essencial.
Além de um argumento bastante original, inteligente e coeso, o realizador, através dos intensos planos de rosto, consegue fazer com que Chris seja o primeiro espectador do filme que protagoniza. As expressões faciais do actor fazem com que experimentemos, com e através dele, a estranheza de todos os acontecimentos e a verdade que se vai revelando.
O simbolismo do olhar é algo que marca o filme, pois, sendo Chris um fotógrafo reconhecido, cria inveja naqueles que desejariam possuir os seus olhos por terem uma espécie de fome crónica de sensibilidade, que, por viverem tão junto das coisas, acabam por ficar cegos para a essência de onde elas participam – o que vai ao encontro do que disse o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty sobre a ciência, na sua obra «O Olho e o Espírito», manipulam as coisas mas recusam-se a habitá-las. O que nos faz pensar que ao comprarem as mais caras obras de arte, no fundo, o que desejariam mesmo era comprar a sensibilidade que lhes deu origem, um olhar que penetra as coisas até à sua essência.
Este não é mais um filme de terror, feito para ficar dentro dos limites da nossa camada sensível, sem a transcender; pelo contrário, a superfície quer garantir que o conteúdo sobressaia e active uma faculdade reflexiva capaz de profanar a mesmidade do género e lhe dar um novo uso. A primeira longa-metragem de Jordan Peele é uma óptima surpresa e deixa-nos com vontade de saber o que no futuro nos trará a sua prodigiosa sensibilidade.
Realização: Jordan Peele
Argumento: Jordan Peele
Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford
EUA/2017 – Terror, Mistério
Sinopse: Chris e a sua namorada Rose decidem visitar os pais dela durante o fim-de-semana. Primeiramente, Chris tenta perceber a simpatia do acolhimento assim como o nervosismo dos pais de Rose na tentativa de lidar com o namoro inter-racial da filha, mas, assim que o fim-de-semana vai passando, uma série de descobertas perturbadoras levam-no até uma verdade que ele nunca poderia imaginar.