Inspirado na peça de teatro “Frankie and Johnny in the Clair de Lune”, a química entre Michelle Pfeiffer e Al Pacino vai ser o ponto central desta comédia romântica visionária, carregada de drama, emoção e humor. Garry Marshall foi o responsável por a transportar para os ecrãs em 1991, transformando-a num filme atualmente injustiçado merecedor de toda a atenção.
Foi na década de 80 que Al Pacino pronunciou a tão famosa frase: “The eyes, chico. They never lie”, no filme “Scarface”, referindo-se a Elvira, a personagem de Pfeiffer. Ignorá-la neste contexto seria deixá-la cair no esquecimento, até porque é a melhor maneira de descrever a verdadeira natureza das interações entre todos os envolvidos. Só com isso, mesmo antes de se conhecerem, percebemos logo a sinceridade dos sentimentos, a transparência de cada um, o bom e o mau. Dizer que os olhos substituem as palavras seria um eufemismo. O que torna este fator essencial, distinguindo esta adaptação de outras obras cinematográficas, é um pormenor que todos sem exceção têm em comum. É a base da narrativa: a falta de uma conexão.
O enredo é simples: retrata o cruzamento das vidas mundanas. De um lado temos um ex-presidiário que arranja emprego como cozinheiro, do outro temos uma empregada de mesa, emocional e fisicamente marcada por um passado que destruiu tanto a sua confiança, como a hipótese de esta sequer ponderar em envolver-se com qualquer outro homem à face do planeta. Em acréscimo, conhecemos também Cora (Kate Nelligan), Nedda (Jane Morris) – ambas colegas do par romântico, Nick (Héctor Lorenzo), o dono do café, e Tim (Nathan Lane), o melhor amigo da personagem de Michelle, que são os grandes responsáveis pela comédia presente. Apesar de uma certa melancolia à mistura, as cenas de humor são introduzidas de uma forma graciosa, quebrando qualquer tristeza que possa estar envolvida.
É comum encontrar filmes ou séries onde há uma introdução forçada de personagens que se enquadram numa determinada comunidade, mas que dão a sensação de estarem presentes simplesmente para evitar que a obra seja vítima de críticas por não ter representatividade. Em alguns casos, essas mesmas personagens não têm o devido spotlight ou um background adequadamente explicado, cujas falas – se forem cómicas- não acrescentam nada, ou então são demasiado convenientes, dando mesmo a sensação de que só intervêm porque sim. Não é o caso. O enredo incluí personagens inseridas na comunidade LGBTQ, sendo que estas são retratadas com uma subtileza marcante. Não são limitadas pelos estereótipos, apesar de não terem um passado explícito ou um papel de destaque. Mesmo com poucas falas e pouco tempo de ecrã, a sua presença autêntica é sempre relembrada. Não está presente aquela necessidade de dizer logo na primeira fala que fazem parte de uma comunidade específica, o que permite que o tema seja abordado de uma forma extremamente natural, embora igualmente superficial, com o desenrolar da narrativa. Grande parte dos assuntos, englobando os mais profundos, são mencionados com a espontaneidade do quotidiano – sem grandes explicações, sem grandes questões.
O filme em si não gira em torno do romance, mas sim em torno da conexão entre humanos. O desapego não é surpreendente. No Café Apollo, um dos locais onde a ação se desenvolve, as pessoas mais velhas acabam por encarar o espaço como um ponto de convívio, transformando-o numa comunidade, algo presente na forma como determinadas personagens partilham histórias de família ou até mesmo como Frankie já sabe de cor que comprimidos é que uma senhora tem de tomar, ajudando-a. Ainda assim, percebemos que Pfeiffer é distante, que vive protegida por uma armadura, elemento esse que vai ser o grande desafio de Johnny. Por sua vez, este é demasiado extrovertido, insuportável até, obrigando a narrativa a desenvolver-se com a sua calma numa espécie de jogo entre o gato e o rato. Os momentos que compartilham juntos são reais e acessíveis a qualquer um. O amor não é retratado com a leveza a que estamos habituados– onde 90% das coisas são boas, incluindo o facto de o casal viver (quase) única e exclusivamente um para o outro sem se relacionar com o mundo que o rodeia.
A paleta de cores é um pleno convite para nos imergir numa simbiose dos mundos dos pintores Hans Zatzka, Delphin Enjolras, Charles Hoffbauer, ou mesmo de JMW Turner, incentivando o olhar a viajar entre o espetro das flores da primavera e o das folhas do outono. Se por um lado a vivacidade das cores quentes predomina na maior parte das cenas, por outro, é possível ver uma adição de tons mais distantes, escuros ou frios, como o azul – altamente presente no quarto/casa de Frankie que é o cúmulo da sua vulnerabilidade- de forma a criar um contraste equilibrado. Relativamente a esta divergência, os figurinos destacam-se. Quando os cenários são mais claros é o guarda- roupa que se encarrega de nos transmitir cores mais acolhedoras. Mesmo com o uniforme do trabalho, caracterizado por tons que tendem a ser mais apagados/desgastados – que jogam, por sua vez, com as cores do café, tendo simultaneamente um duplo contraste consoante o local onde a ação decorre – tanto Frankie como Johnny fazem questão de colocar uma peça mais forte por cima. As bandanas – no pescoço ou na cabeça- no caso de Al, enquanto no de Pfeiffer, um casaco cinza.
A noite chega a ter um triplo sentido: o caos, a esperança e a solidão transformados num só. É durante a escuridão que as personagens atingem o pico da fragilidade. Deixam cair a máscara, obrigando-nos, uma vez mais, a ser testemunhas silenciosas na cidade que nunca dorme. De um extremo para o outro, dos berros das crianças para o silêncio de um quarto, todos tentam lutar contra o medo criado pela situação plenamente plausível de se encontrarem cada um por si. Johnny, que foi obrigado pelas circunstâncias da vida a ver os obstáculos com otimismo, passa a primeira noite após conseguir o emprego ao lado de uma prostituta. O episódio não corresponde às expectativas. Não há qualquer intenção sexual por parte deste, pedindo apenas que durma – vestida – abraçada a ele. Trocando as armas pela literatura e a violência pelas rosas, Pacino desespera por alguém que o faça viver, que não o limite a uma simples existência.
As noites de Frankie representam o quanto a tristeza é vista como um conforto, absorvendo a personagem, já cansada de tanto resistir, até se tornar parte dela. Gosta do seu trabalho, mas não que casar com ele, vivendo simultaneamente aterrorizada de o deixar. Não tem filhos, acabando por levar com um balde de água fria logo nas primeiras cenas, embora só no fim é que percebemos o início. Passa as noites a ver filmes, às vezes a comer fast food, sozinha, no lugar mais confortável e seguro do mundo por a manter longe da realidade. Ninguém gosta de sair de onde tem paz.
A vista que tem para o prédio em frente, que a colocam no papel de espectadora, confrontam-na com uma série de realidades distintas, algumas bem conhecidas pela própria. Ao colocar-se numa perspetiva externa, esta inicia um debate entre o passado e o futuro, quase como se estivesse a visualizar a sua biografia no papel de uma estranha. O prédio funciona como um vislumbre do tempo, dos riscos, das diferentes consequências- positivas ou não, perante as escolhas que fizer. Este realismo que não ganha pó insere- nos na ação, mantendo-nos ao seu lado.
É de notar os detalhes presentes no quarto: os elefantes de porcelana – superstição que Johnny conhece, notando logo que estão posicionados de forma errada, o que significa que não fazem o devido efeito – como também dois livros de auto-ajuda: “Women who love too much”, de Robin Norwood, e “Anxiety and Panic Attacks: Their cause and cure”, de Robert Handly, que só por si já nos explica muito sobre as características da protagonista.
Contudo, é também durante esta altura que as personagens criam laços íntimos de cumplicidade. Há uma quebra com o cansaço do trabalho, as oportunidades são dadas, daí a esperança no meio das trevas.
A profundidade do monólogo final seguido pela leveza da melodia de Clair de Lune cria uma verdadeira explosão de emoções. É aqui que sabemos o passado que explica os atos. “Estou à espera de alguém que tome conta de mim desta vez.” Há todo um valor simbólico repleto de metáforas relacionadas com a confiança e a exposição corporal. Johnny, tão habituado a presenciar a fragilidade humana, abraça as cicatrizes com a inocência de uma criança – como se um beijo fizesse desaparecer as feridas. Frankie desarma a sua superioridade intelectual ao deixar que ele veja o que vai dentro dela, transformando a rejeição autodestrutiva num grito de socorro. Mais uma vez não é sobre o fracasso. É sobre a solidão.
Por fim, a última cena decorre ao amanhecer. Tal como na primeira noite, temos uma perceção das vidas de cada um, carregadas novamente de uma simplicidade estrondosamente complexa. Com um final que alimenta o realismo anterior, Frankie e Johnny encontram-se sentados à janela a escovar os dentes. Ao contemplar o prédio, Michelle foca-se numa janela em específico e sorri. Ela fez a diferença e está consciente disso. Todo este conjunto só reforça a genuinidade da narrativa. É um filme que pertence a toda a gente.
“Como vocês sabem, não costumo aceitar pedidos. Há sempre uma exceção à regra. Não sei se esta é a música mais bonita que alguma vez foi escrita, Frankie e Johnny. Quem me dera que esses fossem mesmo os vossos nomes, mas sei que me estão a enganar. Quem me dera que vocês realmente existissem. Talvez seja maluco, mas gostava de acreditar no amor. Por que raios é que pensam que trabalho a estas horas? (…) Sejam vocês quem forem, independentemente do que estejam a fazer, esta é para vocês.”
E Clair de Lune começa a tocar.