As principais mitologias criadoras formadoras das religiões globais que dominaram o mundo tinham como ponto em comum, a noção que a verbalização das palavras em voz alta continha uma relação com a realidade, na medida em que a criavam, tal como a luz surgiu com a verbalização latina Fiat Lux. A civilização foi-se alterando à medida que a ciência surgiu, mas a a relação do discurso com a origem da realidade manteve-se na tradição oral do contar de estórias e na ação mágica das relações xamânicas entre mundos. Abre-te Sésamo ou Abracadabra são exemplos dessa relação, levada a um extremo no mundo fantástico do Harry Potter.
O filme “Gelo” de Gonçalo e Luís Galvão Teles insere-se nesta tradição da estória construtora da realidade usando uma estudante de argumento que pretende contar o enredo de um seu filme, enquanto uma montagem alternada vai mostrando o nascimento e a infância de uma menina que se confunde com a personagem de Catarina ou Joana, interpretada por Ivana Baquero. Contudo, o filme insere-se também no género cinematográfico que utiliza o conceito Borgiano de caminhos bifurcados para suprir uma impossibilidade do contar de estórias – o tempo e o espaço em que o fazemos é só um – mas neste filme há vários, porquanto haja vidas suficientes para vivê-las.
O ADN de um ser humano primitivo pode ficar em suspenso por milhares de anos e ser ressuscitado para voltar à vida, tal como as pessoas podem ficar em suspensão criogénica para mais tarde voltarem a ter uma nova oportunidade, não para regressarem à sua vida, mas iniciarem uma outra. Contudo, o ADN não é apenas um conjunto de proteínas, mas parece transportar consigo uma memória involuntária real ou ficcional que se sobrepõe à realidade do momento qualquer que esta seja.
Desejo fazer uma declaração de intenções, sou particularmente sensível e inclinado para filmes que privilegiem o argumento e que o usem como ponto de partida para a criação de um filme e este usa mesmo esse género de escrita como dispositivo, o que me parece bem conseguido numa fase inicial embora vá sendo difícil manter o dispositivo à medida que a estória avança. A montagem alternada é um recurso bem utilizado ao serviço do filme, criando uma realidade paralela onírica e memorial, que deixa o espetador a realizar o puzzle mental do que poderá ser o filme que nos está a ser mostrado. A fotografia destaca-se no filme por acompanhar os diversos tons das estórias que se estão a contar e que vão oscilando entre a tonalidade bastante realista da estudante de cinema, a tonalidade esbatida do passado, a claridade branca da viagem à neve e a negra do laboratório criogénico.
A imortalidade é atingida através de vidas, sendo estas sinónimo de estórias, de vivências reais ou imaginadas. Este filme oferece uma boa reflexão sobre a realidade como baliza temporal a nossa mortalidade, que nos mantém interessados e presos à imagem que nos conta a estória, deixando uma boa sensação, aquela que nos faz querer ouvir mais.
Realização: Gonçalo Galvão Teles , Luís Galvão Teles
Argumento: Gonçalo Galvão Teles , Luís Galvão Teles
Elenco: Ivana Baquero, Afonso Pimentel, Albano Jerónimo
Portugal/Espanha/2016 – Drama
Sinopse: Nascida a partir do ADN de um cadáver da Idade do Gelo, Catarina cresceu isolada do mundo, num palácio, sujeita a experiências sobre a imortalidade humana, conduzidas por Samuel, um investigador da VIDA FUTURA. Uma estudante de cinema chamada Joana, apenas Joana, apaixona-se por Miguel, um colega de turma obcecado pelo gelo. Numa trágica viagem ao topo de uma montanha com neve, a jovem vê o seu amor fugir-lhe subitamente dos braços.