O encontro fortuito é um golpe de sorte ou um golpe de azar? Assim se pode perguntar. Fanny Fournier (Lou de Laâge) passa, insuspeitamente e sem reparar, por Alain Aubert (Niels Schneider) e é ele quem fica a olhar, suspeitando ele sim, cogitando se aquela que passou por si não era a jovem por quem nutriu uma paixoneta/paixão/amor adolescente nos seus tempos de estudante num outro país? Somente lhe falando é ele que ficará a saber. Vai até junto dela. Entabula conversa. E é mesmo. A Fanny Moureau a quem nunca declarou o que por ela sentia. E que bem conversam. E ela não diz que não a um outro encontro. Coup de chance? Non, non. Coup de mauvais hazard, oui, oui, bien sûr. Pois estamos num thriller de Woody Allen, falado em francês, mas repleto de género americano.
Os modos serão os mesmos: fadiga emocional e familiar, traição, engano, maquinação. A sua materialização será a mesma: discurso enredado, desvio, intriga, manipulação. A perfídia desses atos como a sua própria beleza e esplendor. E, como sempre, um movimento-ação contínuo, de um lado para o outro, a compressão do tempo, a rapidez da sua dilatação, o rumor e o burburinho do citadino, pontuado pelo bucólico do campestre, ou mais bem dito, o mover entre o espaço do maquinar e o espaço do aniquilar, no bom sentido dos contrários que se ajudam mutuamente.
Acima de tudo, temos o tema do par de opostos, equação binária de Allen que o tem acompanhado muitas e muitas vezes, figurada que é nesse binómio do “imperfeito casal perfeito”, feito sempre ele de seres claramente contrários entre si, mas que se inter-e-entre-lutam para serem compatíveis e assim enganam completamente a natural incompatibilidade que lhes é mútua, no inglório esforço que o verniz socioeconómico os obriga a continuamente manter. Porque Allen continua a tratar dos estratos mais altos da sociedade, a dita “boa sociedade”, bem-sucedida, bem-endinheirada, bem-formada, bem-pensante e bem-falante. Tudo é bom. Bom carro, boa casa, boa roupa, bom restaurante, boa festa. Que mal pode ser encontrado quando tudo o que se vê se qualifica como “bem” ou “bom/boa”? Ora bem…tudo. Não se trairia alguém se já não houvesse o ensejo, fruto da insanável insatisfação, para o levar bem a cabo.
Fanny é a falsa feliz. Todo o bem/bom que a acolhe e suporta pouco parece fazer para diminuir o peso da infelicidade e a consciência de que a “boa escolha” que fez, a de casar com Jean Fournier (Melvil Poupaud) – em contraposição à “má escolha” do seu primeiro marido – nada conseguiu fazer para a tirar desse passo anterior a ser, logo de seguida, “bem” infeliz. É mais uma das personagens contraditórias de Allen? Tem tudo o que quer, mas nada do que realmente quer, e o que ela quer, ela não sabe. Por isso, é volátil, é tensa mesmo quando sorri, explode quando já mais não pode carregar, vai para ali e depois para acolá (o movimento de Allen não é só na rua, mas no sentir, pensar e fazer) opina e desopina, acredita e desacredita, suspeita mas com reservas, e reserva-se para suspeitar até ao fim, apesar de acreditar e desacreditar. É, como tal, uma personagem-tipo de Allen, e bem redonda. Imprevisível e centralizadora de todos os esforços (e desforços) das outras personagens. É o magneto, a órbita de todas as outras órbitas. E não chama a si a sorte, mas sim a desgraça, e com ela, e por causa dela, a faz cair também sobre os outros.
De um lado, o marido. Ao contrário de todos os que o rodeiam, não veio do já alto, mas sim do baixo, ou seja, o seu conseguido foi realmente alcançado e agarrado, não dado. O que o qualifica como estando para lá do típico diletantismo de “boas famílias” que tão entorpece os outros e que assim os posiciona para serem por ele “bem” enganados. Cai sobre ele a névoa da suspeita ou a sombra da suspeita (para referirmos o bom lado Hitchcockiano com que este filme tão bem se veste), não só sobre as suas atividades profissionais – é claramente um banqueiro de investimentos ou um investidor de grandes fortunas (Gordon Gekko, anyone?) – bem como no modo como conseguiu obter a sua riqueza pessoal, havendo e correndo rumores – ditos entre copos de cocktail em festas glamorosas – de que o seu sócio desaparecido e depois aparecido morto foi, alegadamente, feito sumir por ele. A dúvida é boa ajuda. Fica com ela, porque ela não desengana ninguém a bem enganar todos. É a (muito) satisfatória personagem maléfica de Allen. É expressiva, galante, oferece e dá, mas suspeita e controla, telefona e marca os passos, calcula e contrata, sabe mas esconde, elabora e enreda, decide e manda matar.
E manda matar quem que não o pobre escritor e poeta? A personagem incauta, o Woody Allen expresso do filme (?), o aéreo e atmosférico (em múltiplos sentidos, e não nos melhores, pelo menos para ele) sonhador que só quer amar uma musa reencontrada. Consegue-o, e efetivamente conquista Fanny, ainda mais volátil a torna, a sua poesia é inebriante, a confusão dela ainda maior é. Não soube do seu descuido. No thriller de Allen, um pobre coitado terá sempre que ir. Quando sai do seu apartamento, dentro do saco de Dragos (Sâm Mirhosseini) e Milos (Jamel Elgharbi), Alain parece ir mais desmembrado do que inteiro.
Falta a personagem deslindadora do thriller: a neurótica e desconfiada mãe de Fanny, Camille Moreau (Valérie Lemercier), amadora de livros policiais (ou não estivesse ela num filme policial sem polícias, mas com detetives privados, que é assim os ricos resolvem os seus predicamentos) e que, usando os métodos dos desconfiados, consegue chegar à conclusão da trama: a de que o culpado do desaparecimento aéreo-marítimo de Alain é Jean. No golpe insólito e (bem) irónico, e quando Jean já tem apontada a caçadeira a Camille é ele que é acidentalmente morto por outro caçador. Aquele que tanto caçou foi, por fim…caçado. Os golpes, quando não se esperam, são bem terríveis. Que não se tente a sorte, porque no fim só se acaba com…o azar. Allen dixit, Allen made it.