Há dias, celebrámos aqui no Brasil o Dia do Jornalista, a 7 de Abril. Sempre fui fã de datas comemorativas, e o meu ofício de assessor de imprensa tem alimentado esse interesse — aprecio esse pretexto simbólico para parar, reflectir e, quem sabe, reorganizar algo cá dentro. Este ano, em particular, a data trouxe-me mais do que um simples pretexto: trouxe-me uma pergunta que não me largou desde então. Talvez tenha sido o momento, o cansaço ou essa mania que tenho de revisitar o passado em dias marcados. Seja como for, ficou a pergunta: e se eu não fosse jornalista?
Na verdade, foi o cinema que trouxe essa dúvida de volta. Estava a escrever um texto sobre “Guerra Civil”, de Alex Garland — um filme que, à primeira vista, fala de um país em estilhaços, polarizado e distópico, mas que, no fundo, diz muito sobre nós. Sobre os jornalistas. Sobre o modo como vamos sendo engolidos pelo ofício até deixarmos de perceber onde começa o trabalho e onde termina quem somos.
Três cenas, em particular, ficaram gravadas em mim. A primeira mostra Lee Smith, a fotojornalista interpretada por Kirsten Dunst, a atravessar o caos. Ela corre da destruição, mas mantém a câmara firme nas mãos. O medo está presente, mas logo cede à urgência do ofício. O instinto profissional sobrepõe-se ao instinto de sobrevivência.
Na segunda, Jessie, a jovem fotojornalista interpretada por Cailee Spaeny, vê a sua colega cair morta ao seu lado. O choque é palpável, a dor humana é visível. Mas ela não larga a câmara. Ela fotografa a morte. E segue em frente.
Como se não houvesse escolha. Como se o compromisso com a cobertura da história fosse mais forte que o luto, mais urgente que o próprio medo.
E, por último, a terceira cena ocorre no fim do filme: o presidente dos Estados Unidos está prestes a ser executado. O jornalista Joel, interpretado por Wagner Moura, interrompe o momento e pergunta: “Alguma declaração?”. E o presidente, vivido por Nick Offerman, com os olhos fixos na morte, implora: “Não deixem que me matem”.
Especialmente esta última cena leva-nos a reflectir sobre a relação entre a imprensa e a realidade. O impulso de continuar, de questionar mesmo quando tudo está prestes a terminar, coloca-nos diante do dilema entre o dever jornalístico e o respeito pela humanidade na sua forma mais vulnerável.
Ao assistir a essas cenas, senti um desconforto estranho. Uma sensação de reconhecimento. Não que eu seja um correspondente de guerra, mas, assim como eles, quantas vezes segui em frente, a escrever, a editar, a ligar, mesmo quando tudo dentro de mim pedia uma pausa? Quantas vezes confundi dever com silêncio, compromisso com exaustão? Como se parar fosse trair uma promessa protocolar com o mundo. Um mundo que, muitas vezes, nos consome, nos mata, nos controla, nos empurra ao limite — e, sim, às vezes, até nos odeia.
Nunca sonhei com o jornalismo. Era uma ideia distante, quase um devaneio. Quando era criança, dizia que queria ser cientista — mais precisamente zoólogo, por causa dos documentários de Sir David Attenborough. Depois, quis ser arqueólogo, à semelhança de Indiana Jones. Mais tarde, antropólogo, como Claude Lévi-Strauss. Acabei por parar na Geografia, movido por uma paixão que nasceu durante a preparação para o vestibular, quando um professor — o querido Gabriel Burani, daqueles que nos viram do avesso — me mostrou que o mundo podia ser lido, decifrado, questionado. A Geografia ensinou-me a observar, a desconfiar, a perguntar. Até hoje, acredito que tudo começou ali.
Na faculdade, os amigos costumavam dizer, entre risos: “Van, tens jeito para contar histórias — ainda vais acabar no jornalismo.” E eu, sempre céptico, limitava-me a rir. Não me via nesse lugar. Soava-me a um território demasiado técnico, demasiado pragmático, e — talvez o que mais me afastava — demasiado centrado no próprio umbigo. Mas isso já seria matéria para outra crónica.
Curiosamente, era nos bastidores desse mesmo território que eu me sentia mais desperto: nos projectos de extensão, nas conversas transformadas em entrevista, nos relatórios que os professores pediam e que, para mim, eram quase retratos — com o rigor de um geógrafo e a ternura de quem escreve crónicas sobre gente.
Não foi uma decisão estrondosa, nem um corte abrupto. Atravessei a ponte entre a Geografia e o Jornalismo quase sem dar por isso — um passo aqui, outro ali, movido por uma inquietação que crescia devagar. Foi preciso escutar — e escutar-me. Perceber que aquele impulso de escrever, de ligar ideias, de contar o mundo, não era apenas um capricho, mas uma parte verdadeira de mim. E que não havia traição em seguir esse caminho.
A verdade é que a travessia foi tudo menos simples. Teve o empurrão da família, os tropeços da vida e uma teimosia antiga que sempre me acompanhou. Mas, do outro lado, havia qualquer coisa à minha espera. Qualquer coisa que, pela primeira vez em muito tempo, fez sentido.
O lado cómico — ou irónico, talvez — é que, durante um certo tempo, ainda tentei conciliar os dois cursos. Mas chegou o momento em que tive de escolher. E escolhi. Não sem hesitação, mas com o coração a apontar o rumo.
Hoje, percebo que continuo a ser geógrafo. Continuo a observar os espaços, as pessoas, os deslocamentos. Só mudei de ferramentas. Em vez de mapas, uso blocos de notas. Em vez de gráficos, frases sublinhadas. Em vez de SIGs, entrevistas. E, no fim, o que faço continua a ser cartografia — emocional, política, social.
Mas nem tudo é romântico. A profissão cansa. Há dias em que parece que já não há mais nada a dizer. Em que as notícias nos esmagam, os prazos nos apertam, os comentários nos desgastam. Há dias em que duvido de mim. Em que me pergunto se estou a fazer a diferença ou apenas a repetir fórmulas. Em que me pergunto se ainda me reconheço neste ofício.
E, ainda assim, fico. Fico porque há momentos que compensam tudo: quando alguém do outro lado me diz “obrigado por escrever isto”, ou quando entrevisto alguém que nunca teve voz e, de repente, sente que foi ouvido. Fico porque escrever, para mim, é uma forma de respirar. É onde tento arrumar o que não entendo, dar forma ao indizível. É o meu modo de habitar o mundo.
Percebi, ao longo do tempo, que há algo profundamente geográfico na escuta. Escutar é mapear o outro. É reconhecer o território das emoções, das memórias, das feridas. Escutar é um acto político. E é ali, nesse instante de atenção absoluta, que me sinto inteiro. Que sei por que razão ainda estou aqui.
Talvez o jornalismo, para mim, seja isso: um lugar de pertença. Um modo de não desistir do mundo. Um compromisso com a escuta, mesmo quando tudo à nossa volta ruge para o contrário. E talvez, só talvez, seja essa a maior função de um jornalista hoje: encontrar humanidade no ruído. E escrevê-la.
Seis anos depois, continuo a não saber todas as respostas. Mas aprendi a aceitar a dúvida como parte do caminho. E, às vezes, isso basta.