HaHaArt Film Festival 2022: Alguns apontamentos sobre quatro filmes

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A primeira edição de um festival de cinema exala um frescor de novidade. Foi esta a primeira sensação que senti ao chegar ao Teatro-Cine, em Pombal, para fazer a cobertura do HaHaArt Film Festival. À porta do festival, os olhares cruzam-se com uma timidez expectante; no ar, sente-se o frenesim dos primeiros movimentos do staff; na sala, os espectadores fixam os olhares na tela, à espera da primeira imagem que preencha a superfície do ecrã.

A atmosfera é preenchida por todos estes movimentos que fazem parte da dinâmica de um festival. Na primeira edição começa a nascer um espírito próprio, que é composto sempre pelos vários espaços, como as salas de cinema, o foyer, a porta do teatro, os locais de convívio; mas, sobretudo, este espírito nasce pela presença humana, pelas relações que vão dando vida a esses vários espaços que fazem parte da cartografia do festival. Tive a oportunidade de ver o espírito do HaHaArt Film Festival nascer, de transitar por esses vários espaços e sentir as presenças humanas, a chuva, os filmes, as gargalhadas, a partilha de opiniões sobre os filmes vistos, enfim, todas as coisas que começam a dar uma identidade própria a um festival. Sentido tudo isto à minha volta foi fácil pressentir que este festival de cinema pombalense parece ter vindo para ficar.

Mas, os filmes são sempre a parte mais essencial de um festival de cinema; são eles que nos movem. É difícil conseguir escrever sobre todos os filmes de um festival; porém, penso que o critério mais natural será focar-me nos filmes que me suscitaram mais interesse e me estimularam para a escrita.

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Começo pela curta que mais me estimulou para a reflexão: “The Quickie”, uma curta-metragem luxemburguesa realizada por Eileen Byrne. A realizadora partiu de uma premissa bastante simples: o que pode acontecer quando um grupo de teatro, em pleno contexto pandémico, tenta ensaiar uma peça através da plataforma Zoom? Este estranho ensaio inicia-se com Corinna, a encenadora da peça, a apresentar os elementos do grupo: Eugen, o dramaturgo; Gladys, actriz; Andreas, actor e marido de Corinna; e Martin, cenógrafo. O título da peça, “Em Alto Mar”, revela muito sobre a aventura que é tentar fazer teatro sem recurso à presença, estando os agentes criativos reduzidos ao mais difícil esforço de improvisação: tentar interagir com um pequeno enquadramento, que rouba tudo o que dá carne à arte teatral, um palco e o aqui e agora dos corpos. Se este ensaio tem tudo para correr mal, ao mesmo tempo, a plataforma online tornou-se o medium ideal para levar a cabo uma experiência, ao mesmo tempo cinematográfica e teatral, onde o drama e a comédia não surgem pela peça em si, mas pela entropia que começa a minar o processo criativo. Este caos gerado no processo, torna visível, tanto as diferenças quanto as proximidades, que existem entre o teatro e o cinema. O cinema ao conseguir injectar realidade na ficção – ao “retocar o real com o real”, nas palavras de Robert Bresson -, consegue dar a ver o teatro na sua natureza: o quanto este necessita da presença e de gerar um poder de crença capaz de fazer o espectador acreditar na verdade emanada por todo o dispositivo simbólico que compõe uma peça. Só assim percebemos como nasce a componente cómica deste filme: um beijo que tem de ser dado…à distância; ou todo o esforço do cenógrafo em compor um cenário credível.

Byrne mostra como é possível fazer um filme simples, sem grandes recursos, sem perder nada em qualidade. A superfície do filme pode parecer demasiado banal, um mero ensaio teatral, onde tudo está condenado a falhar. Contudo, o filme esconde outras camadas de reflexão. Ele mostra o que é o teatro a partir do seu avesso; o teatro como uma arte que lida com o falso e que precisa de um dispositivo físico e simbólico para se fazer acreditar; ao mesmo tempo, mostra o cinema enquanto arte da verdade, que capta os intervenientes a tentar traçar o plano de um golpe, de um embuste.  Naquele momento, o espectador, através da arte cinematográfica, consegue assistir à verdade da mentira; o teatro surge como uma arte desmascarada.

O filme de Eileen Byrne revela bastante originalidade ao conseguir criar reflexão entre duas formas distintas de ficcionar ou como um sério melodrama teatral consegue dar origem a uma divertida comédia novelesca cinematográfica.

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“The Quickie”, de Eileen Byrne

A curta “El Productor”, de Oriol Cardús, despertou-me o interesse de uma forma bastante natural, uma vez que o filme é uma reflexão sobre a própria forma de fazer cinema.

Dois amigos reúnem-se num café à espera do produtor que irá produzir o filme escrito por um deles. Enquanto esperam pela chegada do produtor, o actor começa a questionar as intenções formais do realizador que estão presentes no guião. O seu olhar crítico recai sobre o excesso de movimentos de câmara – os dolly shots; o excesso de efeitos visuais das explosões nas cenas de batalha ou sobre a necessidade do uso de um formato widescreen. O actor defende que todos os excessos formais desviam a atenção do espectador do drama, que na perspectiva deste, está na forma do actor representar. Com a chegada do produtor, as gorduras formais são, também, por ele criticadas, mas já com o seu interesse pessoal em jogo. O filme deve adoptar a “forma da moda” para conseguir a sua selecção em festivais: o widescreen é substituído por um formato 4:3; o preto e branco deverá ser adoptado e a presença de não-actores deve ser prioridade em relação às vedetas.

O alvo crítico do filme é precisamente a forma que dá origem aos “filmes de festival”. No final, temos acesso a uma cena do filme já realizado: um filme-caricatura dessa forma alternativa que possui todos os ingredientes necessários para uma fácil selecção. Porque no final das contas, o produtor tem o grande objectivo de que o filme seja maximamente divulgado, rentabilizado e visto. O filme mostra bem a tensão que existe entre as diferentes perspectivas daqueles que participam num filme: o realizador sonha, o actor quer atenção, o produtor chega, a obra nasce.

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“El Productor”, de Oriol Cardús

Na curta espanhola, “Alcanzar el Vórtice”, de Pedro J. Poveda, um ser espectral vai descrevendo o seu dia-a-dia até alcançar o seu objectivo: chegar ao topo de um edifício onde se encontra o vórtice que lhe permitirá regressar à sua terra natal; nas várias tentativas de alcançar o topo do edifício, o espectro vai mudando de corpos, de roupas e de profissões. O filme é uma inteligente metáfora sobre aqueles que emigram em busca de uma vida melhor; sobre a nudez da chegada a uma terra desconhecida. O espectro começa a vestir-se com o capital simbólico que lhe permita escalar todas as camadas de uma sociedade estratificada. Começa por assumir o corpo nu de um banhista, mas rapidamente percebe que terá de mudar para um corpo de trabalho; assume o corpo de um trabalhador da recolha de lixo, que é expulso mesmo antes de entrar no edifício. Descobrindo que simbolicamente a sua aparência – profissão ou cor de pele – não o favorece socialmente, decide assumir o corpo de um influente mafioso; e este sim, possui o capital social que lhe permite chegar ao topo.

O plano final do filme levanta uma questão essencial sobre a influência do poder na natureza humana: até que ponto os privilégios individuais alcançados no topo não apagam as memórias afectivas de uma luta que é essencialmente colectiva?

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“Alcanzar el Vórtice”, de Pedro J. Poveda

A curta vencedora dos prémios de Melhor Filme Nacional e de Melhor Realização, “Nada Nas Mãos”, de Paolo Marinou-Blanco merece também um destaque especial.

Caetano Reconcavinho (Dinarte Branco) é um agente funerário que, desde a morte da sua mulher, entrou numa profunda depressão e procura desesperadamente uma forma de tirar a própria vida. Durante o seu trabalho vai dialogando com Fausto (António Durães), o cadáver do qual se ocupa e trata.  Fausto entrega-lhe a publicidade a uma palestra, onde Caetano tem a oportunidade de conhecer a Azida de Sódio, um químico com “qualidades atraentes” no que toca a uma morte tranquila e indolor.

A qualidade da realização do filme é inequívoca. Todos os elementos estéticos confluem para uma sensação de unidade: desde a escolha dos planos, a luz, a montagem e a harmonização entre a composição imagética e a componente sonora. Um bom exemplo deste aprimorado trabalho formal está na cena onde Caetano chega ao jardim onde decorre a palestra: existe uma progressiva aproximação ao discurso do orador, desde uma voz de fundo até à intensificação dos ruídos do vento que movimenta os ramos das árvores. Estes ruídos compõem uma sonoridade melancólica que anuncia já a última cena e que consegue traduzir o estado de espírito em que a personagem se encontra.

O filme aborda o tema da morte de uma forma bastante inteligente, conseguindo introduzir questões actuais como a auto-ajuda e a filosofia da positividade, as selfies e a tecnologia, aliando isto a um humor bastante natural. Através da personagem de Fausto, Paolo coloca a morte a falar de si mesma, dando carne e concretude ao mais metafísico e misterioso de todos os fenómenos humanos. Desconhecemos o que leva o morto a querer tanta rapidez no seu processo de morte: será uma dor insuportável, o cansaço de existir ou uma tristeza crónica que nasce dessa dolorosa certeza?

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“Nada Nas Mãos”, de Paolo Marinou-Blanco
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