25 de Abril

Halloween (2018) – A Fantasmática do Medo

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Os fantasmas, mesmo quando de carne e osso, não deixam de assustar e condicionar. Uma fantasmática do medo, uma forma, a lembrança de uma máscara sem vida, um olhar feito de dois buracos, a expressão fixa, o respirar silvado e cortante, o exalo do mal, a inabalável continuação e prosseguimento do matar sem razão, sem porquê falado, sem um descanso que possa ser a explicação dos atos do horrendo.

A Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) de 2018 é também ela um fantasma, o tremer ansioso e enraivecido de um corpo numa existência cínica e marcada pela constante presença d’ A Forma/The Shape (James Jule Courtney, Nick Castle), essa máscara sem face, ou face de uma máscara, mas sobretudo, uma forma e uma abstração do medo – o Papão/Boogeyman – o mal encarnado, o mal sem descanso, o mal resiliente.

A figura de Laurie é também a passagem suspensiva do seu próprio tempo de vida, enquanto decorrer diegético da franquia Halloween, ícone de género – do cinema de terror – e personificação da virgem pura feita mulher amarga e agressiva (militarizada). De 1978 a 2018, outros Halloween se fizeram, alguns deles com a própria Laurie Strode/Jamie Lee Curtis, mas mesmo esses foram feitos fantasmas, diegéticas que agora se apagam, para darem lugar a uma sequela direta, uma continuação vincada por uma linha terrível de 40 anos passados no medo – Laurie – e no silêncio – Michael Myers (James Jule Courtney, Nick Castle) – um tempo de espera, uma construção da antecipação, o contar de armas, o arregimentar de forças.

A Laurie de 2018, envelhecida e empedernida, não deixa de se figurar imageticamente como a doce Laurie de 1978: o cabelo, apesar da brancura, mantém a mesma forma e comprimento, as calças de boca de sino, ainda ela as traz. As rugas da face estão vincadas, como é óbvio, e os óculos já são um instrumento necessário, mas a figuração é a mesma. A qualificação psicológica é que já é bem diferente: o medo fê-la armar-se, couraçou-a, tornou-a focada, mas não a deixou completamente segura, treme ainda (como quando vê a forma de Michael ao longe, quando este se prepara para entrar no autocarro que o levará para um outro hospício), é incomodativa para quem não percebe o quanto ela tem razão – tal como a filha Karen  (Judy Greer) – tem momentos de fraqueza, mas é a personagem que mais tem razão no filme: Michael Myers voltará a atacar. Por isso, ela se prepara. Por isso, ela chama a atenção. Por isso mesmo, ninguém a ouve.

A face sem máscara nunca se consegue ver bem: está (também) envelhecida, a calvície alastrou, o corpo já não é esguio, a barba pouco crescida é branca. Michael – e a sua Forma – ainda é o fantasma que não urde uma palavra. A psicologia não mudou: ele continua a ser a presença física do Mal, a suspeita clara do maligno enquanto permanência do pensamento e da espera. Pois Michael esperou. 40 anos. Esperou por entre tantas filas, por entre paredes fechadas, por entre milhares de refeições, por entre milhares de idas ao pátio, por entre dezenas de avaliações clínicas que lhe fizeram. E, tal como dito pelo seu médico, Dr. Sartain (Haluk Bilginel), e pelas palavras gravadas do seu primeiro guardião, Dr. Loomis (voz de Donald Pleasence),  ele continua a ser isso mesmo: o Mal e o maligno, a força e o pensamento de rasgar, furar, apunhalar, matar.

A face do menino de 1963 e a do homem de 1978 são ainda as que marcam o inexplicável de um porquê nunca respondido. O vazio no olhar do menino de 6 anos e o esforço sôfrego do querer sufocar no jovem adulto de 21 anos são os únicos planos e momentos em que é possível olhá-lo por mais do que um vislumbre. Neste Halloween de 2018, o agora homem envelhecido de 61 anos é sempre uma parte desfocada da imagem, é um corpo, uma forma que quase se vê, mas não se consegue realmente olhar.

Se a personagem se chama A Forma/The Shape, é, no entanto, fora dela que mais o vemos como uma fantasmática branca, em todos os sentidos, da cabeça aos pés, palidez total, mas sempre a chamar o olhar para que o tentemos reconhecer a partir da figurações vistas em 1963 e 1978. Mas não se consegue, ele é outra coisa, outra forma, outra maldade que se faz como outra figura de um horrível. Quando Michael põe finalmente a máscara – e também ela está envelhecida e enrugada, marcada pelo tempo, pois ela esperou igualmente – é que o seu real respiro se ouve, o fantasma toma forma, a sua forma real, o seu estado total, o de ser força e instrumento da vontade inenarrável de fazer o mal. Pois este é um filme de Terror – e um recentrado recomeço de uma franquia do cinema de terror – regressada às mãos do seu iniciador John Carpenter, por ele apadrinhada e novamente nutrida (as personagens puras, a música renovada com tecnologia e os ritmos do agora) e entregue ao cuidado de um continuador, David Gordon Green.

Não há engano no setting, na data, nas formas de fazer: é a mesma Haddonfield, Illinois – a mesma pequena vila do interior – é o mesmo 31 de outubro e a Noite de Halloween, as mesmas personagens-tipo – jovens em idade liceal e soçobrados à sua inevitável hubris: o chamamento do mal e das forças funestas pela assunção da sexualidade – a mesma linha absurda e aleatória na escolha de vítimas por parte de um assassino insensível, o  mesmo cruzar de caminhos, de decisões – certas e erradas – e de coincidências que aproximam e concentram cada vez mais as personagens para o ponto de encontro fundamental do terror no cinema: a casa.

Neste Halloween de 2018, esse espaço-terror – instaurado pelo original de 1978 e de novo significado em dois planos-sequência separados de  Gordon David Green, claramente citadores e devedores ao inicial de  Carpenter – é o da casa-armadilha, feita de grades entre divisões, de manequins-formas que confundem e de uma cave feita de proteção e de horrores, de antecipação e de fechamento final. É nela que Laurie fecha A Forma/Myers. Ele fica a olhar para ela, máscara com cara, face não vista. Laurie combusta o gás. A casa arde. Michael lá fica. As três gerações de mulheres marcadas pelo terror sem voz, Laurie, Karen e Allyson (Andi Maticha) seguem, fugidas e juntas, na traseira de uma carrinha. Allyson leva na mão a faca ensanguentada. Empunhá-la-á no futuro? Michael lá ficou. Voltará?

 

© 2021 Luís Miguel Martins Miranda

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