«Uma história de amor» (2013), embora seja um filme de ficção científica, é um filme que emerge desde a nossa mais crua realidade. Não podemos subestimar o poder que a ficção tem para retratar e transformar o real. Todo o pensar exige uma dose de ficção, como já Friedrich Nietzsche nos havia dito, e por isso, toda a ficção contém, também, pensamento.
O filme conta-nos a história de um escritor de cartas, Theodore (Joaquin Phoenix), que, ao mesmo tempo que tenta lidar da melhor forma com a sua solidão e com as memórias da sua relação com a ex-mulher, Catherine (Rooney Mara), vê a sua vida emocional sofrer uma grande transformação quando adquire o primeiro sistema operativo que contém dentro de si uma consciência artificialmente concebida, Samantha (voz de Scarlett Johansson). A questão que subjaz a todo o filme é: que força tem a tecnologia nas nossas vidas, nas nossas relações?
Neste filme, a suposta evolução tecnológica que nos é apresentada é de uma etapa avançada, mas, por incrível que pareça, nem por isso nos parece tão longínqua da nossa era. Esta é uma das grandes virtudes deste argumento, criar uma série de identificações com a nossa actualidade, sem nunca precisar de adoptar um tom condenatório. Existe, neste mundo possível, saído da cabeça de Spike Jonze, um estranho realismo. Podemos ver isso nos planos que mostram Theodore inserido numa imponente cidade, com as ruas repletas de gente, que radicalmente se ensimesmou e reduziu as suas relações a uma espécie de monólogos sussurrantes com os seus dispositivos. Mas, se por um lado temos a identificação com a realidade que vivemos, nem por isso deixamos de ter algum distanciamento através do tom contemplativo que Spike Jonze imprimiu no seu filme. Este tom contemplativo é-nos dado pelos diversos momentos em que Theodore, desde a sua extrema solidão e melancolia, faz fendas no tempo para relembrar os momentos de extrema felicidade e cumplicidade que viveu, efectivamente, com Catherine.
A forma como o realizador nos dá a ver as duas realidades distintas é de uma enorme mestria. Theodore representa o intervalo entre duas virtualidades: o passado com a ex-mulher e a sua actualidade que é feita pelas vivências virtuais com a voz de Samantha. Mas ,Theodore somos nós, à procura de experiências reais, presos na nostalgia de um passado que já não volta enquanto já nem esperamos um futuro que deixamos de projectar; melancolicamente solitários – ou ingenuamente alegres -, também nos sentimos perdidos entre um passado, onde um dia cheiramos ainda alguma realidade, e um caminho para o futuro, cheio de ilusões momentâneas, onde ouvimos vozes extremamente sedutoras, como a da Scarlett Johnasson, a chamar pelo nosso nome, em cada aparelho sofisticado que nos aparece à frente. Eis que o mito encontra a realidade: hoje, no nosso Jardim do Éden, repleto de maçãs trincadas, as serpentes seduzem-nos para que nos alambazemos com os frutos da Árvore da Ciência. Ironia: foi a mais antiga fonte de alienação que nos alertou para a mais moderna fonte de alienação. Se a religião, um dia, teve um enorme poder de adestramento da nossa conduta e pensamento, a tecnologia irá levar isso ao limite sem precisar de uma filosofia austera e totalitária para isso, porque nós, “livremente”, vamos assimilando, quase inconscientemente, uma série de gestos que começam a perfilar aquilo que somos – ou aquilo que esperam que sejamos.
Se o argumento deste filme é de elevada originalidade e com um sumo filosófico infindável, a imagem não fica atrás. As cores que compõem os cenários e que contrastam com o guarda-roupa, sempre colorido, de Theodore, oferecem à imagem uma estética que se enquadra perfeitamente com as memórias, quase oníricas, de Theodore. Os contrastes entre a cor de Theodore e as paisagens esbatidas repletas de solidão parecem ir ao encontro da duplicidade existente em Theodore, das diferentes virtualidades que o habitam: o seu olhar, quase lacrimoso, é o local onde culminam as suas sensações tristes vindas dos afectos de um mundo esvaziado de vida que o rodeia, mas, ele veste a sua melancolia com trajes alegres e coloridos, e com isso, anuncia todo o potencial de alegria que ele e o mundo contêm. Desta forma, o realizador, foge à apresentação de um mundo tenebroso, arruinado pela tecnologia, e oferece-nos uma história de amor através dessas cores, como se a imagem, e o próprio cinema enquanto fonte do seu enaltecimento e preservação, fosse o lugar sempre mágico e repleto de beleza, que a tecnologia nunca poderá esmagar, poderá, quando a arte quiser, estar ao seu serviço.
Muito fica por dizer sobre este filme, e, ao que parece, falei mais com o filme do que sobre o filme, porque mais importante do que falar sobre é falar com, fazer uma nova ficção, estilizar um ponto de vista sobre outro ponto de vista. Porém, resumindo a minha avaliação sobre o filme, penso que seria impossível não admirar este filme, pela originalidade do seu argumento, pela forma como ele foi realizado, pela preocupação estética na coloração de cada imagem e no seu contraste com as maneiras de sentir das personagens ou pela forma deslumbrante como Joaquin Pheonix deu vida e cor a uma personagem tão frágil. Tudo se conjugou da melhor maneira e o resultado não poderia ter sido melhor.
Realização: Spike Jonze
Argumento: Spike Jonze
Elenco: Joaquin Pheonix, Rooney Mara, Scarlett Johansson
EUA/ 2013 – Ficção Científica; Drama; Romance
Sinopse: Theodore é um escritor solitário que desenvolve uma inusitada relação com um sistema operativo, desenvolvido para suprir todas as suas necessidades.