“Hombre Mirando al Sudeste” (1986)

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“Hombre Mirando al Sudeste” (1986) foi um filme cuja existência chegou até mim através de uma lista de filmes relacionados com “Stalker” (1979), do mestre russo Andrei Tarkovski (o meu realizador preferido e filme preferido, permitam-me o aparte) onde estava este “Hombre Mirando al Sudeste”, um filme argentino de Eliseo Subiela, com uma premissa muito interessante: “Um paciente num manicómio diz ser um extraterrestre. Poderá ele estar certo?”. Fiquei intrigado pela história porque, logo à partida, não conseguia imaginar como se relacionava com “Stalker” e, além disso, nunca tinha visto um filme argentino até à data.

O novo e misterioso paciente é Rantes (Hugo Soto), que aparece sem ninguém saber como. A polícia tira as suas impressões digitais, mas não há correspondência. Rantes é uma entidade de outro planeta, uma projeção (nas palavras do próprio), que em tudo é igual aos humanos, com excepção de uma coisa: não consegue sentir. O psiquiatra incumbido de o tratar é Dr. Julio (Lorenzo Quinteros), um homem divorciado, que vive sozinho e deixou de sentir qualquer tipo paixão pelo seu trabalho e pela vida em geral. O seu quotidiano é vivido em constante indiferença, resignado com o rumo que toma, e sem vontade de o mudar. Algo que acontece a toda a humanidade, que nada faz por modificar o seu comportamento, como Rantes observa.

A falta de resposta racional aos estímulos levou a humanidade a ficar, a pouco e pouco, desassociada de si própria, a enlouquecer. Alguém precisa de ajuda e nós olhamos para o lado, alguém está a morrer e nós passamos por cima. Isto são palavras de Rantes, mais coisa menos coisa. Ele, por outro lado, responde racionalmente aos estímulos. Se alguém precisa de ajuda, ele ajuda. Se alguém tem frio, ele dá o seu casaco. A posição de Rantes é semelhante à praticada na ética Kantiana (a ética do dever). Visto o “extra-terrestre” não ter sentimentos, ele age conforme o dever, conforme aquilo que está correcto. A missão de Rantes é salvar os que não aguentam viver na Terra, os que estão com medo e em sofrimento constante, levando-os para o seu planeta e, além disso, perceber o que há de errado com os humanos e com a sua maior arma, que ninguém no planeta dele consegue perceber: a estupidez humana. Será ele louco ou somos nós que precisamos de uma visita ao manicómio?

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O título do filme deve-se à posição que Rantes adopta quando está a transmitir e receber informação do seu planeta: posiciona-se sempre virado para sudeste. Várias práticas de meditação afirmam que é mais benéfico estar virado para este, porque traz mais benefícios. Será sudeste uma posição que permite a Rantes alcançar o “além”? Estará mesmo a comunicar com outro planeta e, consequentemente, terá mesmo vindo de lá? Para mim o aspecto que impede o filme de ser perfeito, ou bastante perto disso, é ser-nos confirmado que a personagem principal vem mesmo de outro lugar. Não consigo ver outra explicação para duas cenas distintas, em que Rantes utiliza poderes telecinéticos para mover objectos a uma distância considerável (e numa das cenas outras pessoas vêem isso a acontecer, o que elimina a hipótese de ser um fragmento da sua potencial psicose). Creio que seria alcançada outra dimensão se não se mostrasse tanto, e fosse deixado a cargo do espectador a decisão de acreditar, ou não, na história deste paciente de um manicómio em Buenos Aires.

Rantes enquadra-se num personagem-tipo que consiste em indivíduos comparáveis a Cristo. Dois exemplos que se encontram na literatura são Dom Quixote, de Cervantes, e o Príncipe Míchkin, de Dostoiévski, e no cinema um exemplo é o Padre Nazario, de Buñuel. Estas personagens são inteiramente boas, sacrificam-se por quem encontram no seu caminho e (quase) sempre têm reservados desfechos trágicos, mas é um destino que aceitam de bom grado, porque o sacrifício está entranhado na sua própria natureza. Este tipo de personagem é aquele que mais me desperta interesse: o que acontece quando um ser verdadeiramente puro e com boas intenções, é colocado no mundo? Partindo daqui muitas coisas podem acontecer, muitas histórias interessantes podem ser criadas. Este paralelismo com Cristo é feito no próprio filme, mais do que uma vez. Um exemplo é quando, antes de ser sedado fortemente, Rantes diz “Doutor, Doutor, porque me abandonaste?”, uma alusão directa a Cristo na cruz. E tudo isto pede que se coloque a seguinte questão: se alguém como Cristo (ou Rantes, ou qualquer um dos outros exemplos) viesse à Terra, nos nossos dias, como seria o seu final?

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Se algum dos leitores achar que já viu este filme, mas não se recordar de o ter feito, talvez tenham visto “K-PAX” (2001), que tem um enredo muito semelhante, e é acusado de ter “emprestado” (termo ligeiro) muito desde filme argentino. Quanto à qualidade de “K-PAX” e veracidade destas acusações, não posso atestar, porque nunca o vi. Já sobre “Hombre Mirando al Sudeste” posso garantir que é um filme que faz pensar na maneira como a sociedade em geral se comporta, e também como cada um de nós age perante situações quotidianas, às quais damos pouca importância. É uma ficção científica que usa o género muito ligeiramente, de modo a explicar alguns acontecimentos. No entanto, esta obra vai muito além de género, não fica presa numa caixa. Engloba questões humanas e filosóficas que todos devíamos ter em conta e pensar, pelo menos uma vez nas nossas vidas.

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