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«Human, Space, Time and Human» – Da humanidade que navega à deriva no vazio

Human Space Time and Human 1 Human Space Time and Human 2

“(…) O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. «Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu», gritou! «Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como fizemos? Como conseguimos engolir todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao seu sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima e um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? (…)”

– Nietzsche, A Gaia Ciência, §125

O aclamado realizador sul coreano Kim Ki-Duk está em competição no Fantasporto com o seu último trabalho “Human, Space, Time and Human”. Sabemos que, no seu cinema, somos obrigados a uma dolorosa descida até uma zona obscura, habitada pelas mais monstruosas feições do humano. Porém, o realizador faz entrar nessa escuridão uma luz radiante, capaz de mostrar, na mesma imagem, os corpos corruptíveis, desamparados pela sua condição finita, amparados por uma misteriosa infinitude que os abraça. Neste filme é ainda esta contraste que se manifesta, na esperança de um novo recomeço para a humanidade.

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Tal como em filmes como “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” ou “Sem Fôlego”, este é um filme dividido em vários momentos. Tal como no primeiro, em “Human, Space…” também há uma visão cíclica da existência – daí a semelhança entre ambos os títulos. O cenário do filme é um navio de guerra, claustrofóbico, simbólico. Neste navio, viajam várias partes da sociedade, que facilmente conseguimos distinguir por pertencerem à nossa percepção comum do tecido social que habitamos: várias pessoas comuns, que viajam de férias; um casal simples, que viaja em lua de mel; um renomado político e o seu filho; a tripulação; um grupo prostitutas; um grupo de gangsters e um velho misterioso.

O primeiro capítulo é dedicado à descrição da humanidade, tal como a conhecemos, e a nossa humanidade foi totalmente construída tendo como base a desigualdade. Kim Ki-Duk opta por começar o filme com essa visão sobre a desigualdade, que se torna a base temática para todo o filme. O centro de tensão inicial é a suite luxuosa que foi reservada ao político a bordo e ao seu filho. A partir desta cena, todos os passageiros a bordo começam a tomar consciência da sua sujeição às injustiças e desigualdades a bordo; os gangsters têm uma oportunidade para se tornarem os capatazes bajuladores do senador, fazendo uso da ameaça e da força para o proteger. Porém, existe um instinto humano que antecede a construção social no paradigma da desigualdade. É aqui que o realizador começa a sua descida até à natureza mais bruta do ser humano. O casal Adam (Keun-Suk Jang) e Eve (Mina Fujii) – que representam as personagens bíblicas, com a esperança na criação de uma humanidade por vir – é o primeiro a insurgir-se contras as injustiças, e também, o primeiro a sofrer represálias. O corpo de Eve torna-se um rodízio sexual no qual todos os gangsters, incluindo o senador – e a personagem na qual ainda depositávamos alguma esperança, o seu filho – satisfazem os seus apetites libidinosos, da uma forma tão violenta quanto cobarde. Em todas as cenas de violação de Eve, o velho misterioso, com uma presença quase omnipresente, consegue espreitar todos esses actos.

Num segundo momento do filme, Kim Ki-Duk continua a descer para explorar as entranhas mais sangrentas do ser humano.  Os passageiros descobrem que o navio no qual viajam navega agora pelos céus. Interpreto esta mudança menos como uma subida do navio até ao céu, e mais um esvaziamento do mar. Esta metáfora parece remeter para a personagem nietzschiana do louco, que num aforismo da sua «A Gaia Ciência» anuncia a morte de Deus. O louco usa a metáfora do esvaziamento do mar como essa perda irreparável das referências divinas criadas pelo ser humano. No filme, as personagens usam esse mesmo sentido de um desaparecimento do mar onde navegavam, perdendo todas as referências geográficas, e ao mesmo tempo as morais. A imagem de um navio que navega à deriva, perdido na imensidão, torna-se uma excelente metáfora da nossa condição niilista. Por um lado, a perda total das referências é assustadora por deixar o homem entregue a si mesmo, sem lhe dar os princípios normativos da sua acção; por outro lado, aparecem aí todas as possibilidades, uma oportunidade de emancipação. Ou talvez esta subida do navio seja um território onde reina um estado de excepção. O homem perde a sua aura divina, e abandonado a si, torna-se um simples bando, transitando da humanidade para a animalidade. Esta nova criatura é o ser na sua total nudez, esvaziado de todos os seus direitos mais fundamentais, que, por isso, fica à mercê de um poder soberano que dispõem da totalidade do seu corpo e da sua vida. Todas as pessoas a bordo tornaram-se uma espécie sub-humana, entregues à sua natureza mais destrutiva. Então, aquele espaço precisa de um novo fulgor criativo, e esse será o toque do velho demiurgo que se encontra no navio. E é este, também, o toque criativo que o filme de Kim Ki-Duk precisava, pois sem ele, sem a simbologia desta personagem, o seu filme ficaria também ele a pairar numa escuridão completa, e tanto a vida como o cinema são feitos de luz.

Assim que o mar desaparece, entramos no segundo momento do filme, o Espaço. Na ausência de um destino, de um porto seguro onde atracar, a preocupação agora é a escassez de alimentos e a sobrevivência individual – todos são forçados a agir. O senador autoproclama-se único gestor de todos os alimentos a bordo, alambazando-se, junto com o seu exército de gangsters, com refeições bem compostas e recheadas. Os passageiros começam a intensificar a sua insurgência contra o governador, assim como os membros da tripulação que, desde o início, escolhem não compactuar com o senador, por se sentirem responsáveis pelo navio e pela vida das pessoas que nele viajam. Assim que os passageiros se revoltam e pretendem apropriar-se dos alimentos, o novo elemento simbólico entra em cena: a arma do líder dos gangsters. Os passageiros são ameaçados com a presença da arma e o medo começa a fazer recuar o ímpeto de revolta coletiva. É disparado o primeiro tiro pelas mãos do senador, e um corpo alvejado, cai, sem vida, servindo como exemplo para todos os passageiros que se rebelaram.

No terceiro momento do filme, o Tempo, a escalda de violência chega a níveis inusitados. Os recursos são cada vez mais escassos e o desespero é máximo. O senador põe em prática uma solução final, que consiste num massacre total de todos os que estão a bordo. A espiral de violência atinge o seu ápice. O passar do tempo começa a sentir-se. Eve sobrevive, mas carrega no seu ventre aquilo que ela chama de semente do pecado. Mas a grande significação da temporalidade está presente naquela que é a personagem mais criativa do filme, o velho misterioso. Nunca devemos subestimar o poder simbólico que o realizador sul coreano consegue imprimir nos seus filmes. Enquanto toda esta espiral de violência acontecia, o velho, pacientemente, ia juntando pequenos pedaços de pó e terra que encontrava para formar o seu pequeno canteiro a bordo, com a esperança de poder recuperar a natureza que irá sustentar uma nova humanidade. Em todo o filme esta personagem nunca diz uma palavra, preservando a significação do silêncio. Tudo o que ele faz são pequenas acções, que aparentemente insignificantes, vão ser a génese de um novo mundo. Este demiurgo sai do navio misteriosamente, deixando desenhado com um rastro de sangue um símbolo de infinito. Este demiurgo é a luz que o realizador faz incidir sobre toda a obscuridade onde reinam as forças mais caóticas que parecem tomar conta da carne humana. É pura força significativa e o mais contemplativo do filme, reino onde Kim Ki-Duk é mestre, e que o torna, a meu ver, num realizador que merece toda a nossa atenção. Todos os seus gestos são poéticos. De todos os cadáveres ele fez um fertilizante, capaz de alastrar e aumentar a nova natureza que ele cria – ou recria. O toque estilístico capaz de embelezar as suas imagens é cancelado, por um transbordamento do conteúdo, que explode com a forma. Alguns filmes tornam-se puro conteúdo, ao mostrar realidades demasiado monstruosas que parecem querer sair pelos poros da forma. A beleza, quando vista como uma camada que reveste a pele do conteúdo, parece dissolver-se por entre forças excessivas que destabilizam a harmonia das formas belas. Assim, aquele embelezamento contemplativo que o realizador nos mostra em outros filmes seus é aqui cancelado, fazendo sobressair o poder excessivo de todos os gestos violentos. A beleza permanece, porém como presença negativa, incapaz de surgir devido à irrupção de uma força desde o conteúdo que provoca um desvanecimento da forma – ela fica à espreita, à espera de um momento para se voltar a mostrar.   Contudo, o realizador usa a personagem do demiurgo como o elemento capaz de resgatar essa beleza, concentrando nele esse poder contemplativo que está impedido de resplandecer. São os seus gestos, o seu silêncio, a sua obra que vão trazendo a esse inferno alguma possibilidade de beleza, e à escuridão alguma luz.

No quarto e último momento do filme, existe uma volta à humanidade, e o teor pessimista do realizador torna-se evidente; porém há uma natureza nova que contempla esta nova humanidade. Eve, sozinha, dá à luz o seu filho e com ele vive num novo estado de natureza. A arma que viajava no navio, reaparece nas mãos da criança. O navio transforma-se numa paisagem verdejante. O bebé cresce. A mão dele descobre um pouco da perna da mãe, que rejeita a investida, fugindo. A mesma realidade repete-se. O humano reaparece com o seu mesmo âmago de maldade. Porém, esse humano tem à sua volta uma natureza nova, recuperada.

Não estamos perante o melhor filme de Kim Ki-Duk, porém o filme não consegue deixar de nos fazer admirar o talento e sensibilidade do realizador sul coreano. Se o mal da humanidade parece condenado a uma repetição infinita, que se repitam também estas poderosas imagens, que tal como a natureza que contempla a nova humanidade, possam ser essa força viva capaz de criar um novo mundo de imagens, que fixem no mundo uma memória duradoura da verdade da sua natureza.

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