Menina, nunca na vida
vi coisa igual a tua boca
nem nunca meus olhos viram
teu corpo e tua carne moça.
Deixa que eu sinta a beleza
de tuas coisas escondidas.
(HILDA HILST, Balada Pré-Nupcial)
Depois dos prémios arrecadados com o filme sobre a primeira guerra mundial, “1917” (e que incluíram três estatuetas douradas), Sam Mendes (007:Skyfall, Revolutionary Road) regressa para contar mais uma história, “Empire of Light” (Império da Luz, 2022), desta vez despida dos efeitos visuais, e marcadamente preenchida de subtextos.
Poderá, porventura, ficar-se com a sensação que demasiadas histórias são narradas neste conto do Império (e sim, alguma da narrativa torna-se a dado momento excessiva), todavia, o modo como elas se entrelaçam entre si reflecte bem a maneira como os planos estético, mental, e social e político, podem ser correlativos. O Império é uma sala de cinema, situada numa cidade da costa britânica, nos árduos e conservadores tempos da governação de Margaret Tatcher; a luz cabe a nós, espectadores, escolhermos reconhecê-la por de entre as várias brechas da escuridão que Mendes nos oferece, a saber, a luz da amizade, a da arte pela mão do cinema, a da democracia e da igualdade, e/ou a da loucura.
O espaço do Império é palco, neste filme, de diversos apogeus e declínios, por um lado, Hilary (Olivia Colman) tem a sorte de encontrar no seu caminho o mais recém funcionário da bilheteira das salas de cinema, Stephen (Michael Ward), (quando as salas de cinema cheiravam às sensações permitidas porque o aveludado em toda a parte permeabilizava aquilo que sentíamos quando assistíamos a um filme), por outro lado, os vidros e as portas do estabelecimento não suportarão, mais tarde no tempo, a fúria dos skinhead na perseguição aos negros.
Unidos pela vontade de curar a asa partida de uma ave que se encontra no andar do topo do Império, agora abandonado, Hilary e Stephen também eles têm as suas próprias asas amordaçadas, Hilary pela sua condição mental, e Stephen pela discriminação da sua cor da pele. São ambos frutos da mesma marginalização, ou seja, o desdém com que a sociedade (conservadora e sob um Estado autoritário) olha para aquilo que dita como diferente, e por ser diferente, é mau e deve ser polido. À medida que a relação de amizade e de amor se intensifica, as duas personagens atingem o seu clímax, Hilary é levada à força para tratamento psiquiátrico, enquanto que Stephen é, por mais do que uma vez, violentado em praça pública.
Aquilo que a sociedade teima em manter na ordem, em nome da produtividade e do progresso, é, por demasiadas vezes, as coisas belas escondidas que trazemos atadas ao peito sem que se vejam. Em Hilary, é o dom da sensibilidade para a poesia que, na sua preciosa inutilidade, consegue tudo transmitir e transparecer, e, por isso, vai dar-lhe força para sair da relação abusiva com Donald Ellis (Colin Firth: actor nada bem escolhido para este papel), bem como, para se despedir de Stephen na hora de o deixar voar voos mais altos.
Consciente dos palcos de momentos trágicos da História (e de algum tipo de limpeza étnica da civilização), este filme contrapõe-nos a magia nostálgica da história analógica do cinema, e podemos voltar a entrar na sala das bobinas e reaprender, quase passo a passo, toda a mão humana que entrava em acção para fazer entrar em cena uma das mais belas experiências estéticas que qualquer um de nós pode ter: assistir a um filme na sala de cinema. Este Empire faz-nos a todos lembrar, com certeza, de “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore. É de notar que a nostalgia perante a sala de cinema e o modo de fazer cinema tem servido de mote, actualmente, a diversos filmes e realizadores, é o caso de Spielberg com “The Fabelmans“, Chazelle com “Babylon“, e até Iñárritu, num tom mais futurista, com “Bardo“. A preocupação com o fim do cinema não é de agora, tantos quantos atestados de morte anunciada já foram traçados, contudo, o meio pelo qual ele acontece sofreu, como toda a evolução tecnológica, uma digitalização que, a meu ver, o desmaterializou. Quando assistimos a um filme pela primeira vez, numa sala de cinema, nunca sabemos aquilo que esperar da tela, mas corremos sempre o risco de nos encontrarmos a nós mesmos. É que no escuro do cinema, todas as lágrimas e todos os sorrisos são silenciados e escondidos, e são sem julgamento, pelo que especialmente nesse espaço, há espaço para deixar sair a vergonha, e deixar entrar a luz.