No seu filme INTERSTELLAR, e entre a epopeia de exploração espacial e a proximidade nas relações interpessoais (muito particularmente entre Cooper e os seus filhos), Christopher Nolan arquiteta um épico intimista, capaz de jogar entre os planos gerais do universo e os grandes planos das faces, num balanço cinemático entre a amplitude e o centramento. Oscilando levemente entre esses dois extremos, INTERSTELLAR é um filme de respiro do grandioso enquanto mediado pelo intrínseco.
O Multidimensional, o Humano/Pós-Humano
Da imensidão das dimensões incógnitas e não reveladas do espaço-tempo, ao universo do humano, inseguro, doloroso e sofrido. A viagem é uma para além dos confins do conhecido, mas é também uma outra ao interior duvidoso e angustiado do ser. Essa ontologia da culpa ecológica (a Terra que destruímos) só pode ser resolvida pelo alcançar fenomenológico do absolutamente grande, do inevitavelmente desconhecido, do estrondosamente espiritual (o universo [do pós-humano] para além do buraco negro).
O que está para além do que é hoje o ser-se humano? O corpo físico do que viermos a ser (o qual nunca vemos), a espiritualidade do que saberemos então (que certamente pressentimos e até mesmo sentimos) são os enigmas do maravilhoso que impregna INTERSTELLAR. Essa pós-humanidade, já longínqua da sua Terra-Mãe, é um ser coletivo da multidimensionalidade espiritual, onde a forma é função e a função forma.
O Humano e o Tecnológico – Desfasamento e Reconexão/Ligação
Dilacerado e oblívio a um mundo desprovido do sentido do maravilhoso, Cooper é o Homem Desfasado. Desfasado de uma organização social que prevê a gestão de recursos em vez da exploração de novos meios, uma sociedade que gere e não gera, nem ideias, nem esperança. Desfasado, porque maquinal e tecnológico num mundo que se pretende recuado a uma mecânica da simplicidade e ao agrário da recoleção. Desfasado, porque sofrido, viúvo, a sua mulher perdida por esse mesmo afastar da máquina tecnológica (e que lhe poderia ter diagnosticado o cancro que a matou).
A Tecnologia salvará, no entanto. Subterrânea, dissimulada na escuridão, encerrada entre paredes. E só ele, Cooper, tem a técnica, o saber tecnológico, a capacidade de pilotar a nave até à possibilidade de passagem (todo o filme é feito de pontos de passagem, abertos ou obstruídos, comunicantes ou não-comunicantes). A comunicação entre universos e mundos distantes, entre futuro e passado, passado e futuro, entre humanidade e pós-humanidade é a circularidade não quebrada que alimenta o filme. O que está para lá encontra-se também aquém, o que defronte ocorre igualmente retroativamente se posiciona, tempo, espaço, vidas, memórias.
A Família – Espaçamentos Temporais, Afetos Conectantes
A relação central do filme é a que liga Cooper e Murph, pai e filha, separados pelo tempo gravitacional, desencontrados no espaço do real, mas afinal tão conectados no imenso da multidimensionalidade. Esse espaço da ligação impossível, do desfasamento das dimensões, é a abertura do campo do amor, da lógica e da política dos afetos, impossíveis eles de fazer acontecer o que finalmente fazem ocorrer, a conexão total, toda ela tão de aproximação mental como de pura fantasia do possível. Só o que não é passível de acontecer pode realmente vir a ser real. Somente na destruição das coordenadas do físico se acrescenta o planalto do metafísico.
As palavras de dor trocadas entre os dois, o correr de Murph atrás do carro partido do pai, as gravações dos discursos ditos para um (aparente) nada, desfasamentos no tempo, mas dores tão sencientes e tidas afirmam que essa lógica dos afetos é o que mais marca a problemática da necessidade e falha humana, no que mais queremos ser melhores, mais falhamos no que resta e nessa soma imperfeita encontra-se o que mais nos declara como singularmente humanos: amamos os nossos. O tempo não foi destruidor, no fim encontram-se, Murph já no fim da sua vida, o pai tão novo como ela o conhecera. Esse desfasamento final (que ligação puderam eles ter afinal?) é uma planura, uma conversa tão leve, tão evanescente, quanto é imensamente grandiosa porque tão contida, é a expressão de um afeto absoluto.
Os Espaços – Possibilidades, Incertezas, Decepções
Palcos e espaços da desolação, nenhum dos planetas vividos e visitados é mais do que um vazamento dos elementos. Da secura da Terra, reduzida a uma paleta de azuis, castanhos e verdes, diminuídos, tingidos de cinzento, estéreis, pedindo vida, ansiando por ela. No planeta de água, elemento de vida, é só a morte que se encontra, os céus carregados e ameaçadores, o oceano sem fim, matizes infinitas do azul (um outro azul, mais pesado, mais carregado, mais intenso e doloroso) que não trazem a esperança do poiso e da terra como casa. O planeta gelado é a brancura (também ela tingida de um azul-cinzento) que mais contrasta com o castanho da Terra. É o branco da mais pura esterilidade, nele não há a figura da estabilidade, é um planeta em suspensão (a suspensão dos elementos é uma figura visual que Nolan constantemente retrabalha) e de suspensão. Nele não há lugar à intensidade interior, todo ele é congelo do sentir, é subversão da interioridade, figurada no sub- reptício e enganador Mann.
As Figuras Cinemático – Visuais
Enquanto enformações de visualidade, as recorrentes figuras cinemáticas de Nolan estão uma vez mais presentes: o círculo, a espiral e o polítopo, sob a forma de um hipercubo de quatro dimensões, o tesseracto.
A circularidade, enquanto forma figural, tem o seu desenho mais pujante no buraco negro massivo ao qual é fronteira e é entrada. Círculo que introverte e extroverte, da espacialidade conhecida para o buraco de verme, e de novo exterioriza, para esse outro espaço do além. Enquanto esfera do imenso, linha circular em volumetria, é um lugar do negro que é repleto de cor, de rasgos de luz, é a possibilidade do positivo no negativo. A Endurance integra-se num sistema de funcionamento circular, é o círculo em rotação permanente, uma circularidade de projeção, perpendicular ao movimento de avanço. Círculo em rotação no eixo vertical circulando o círculo em rotação no eixo horizontal. Figura tripla da circularidade. Por último, a estação espacial, também ela estrutura do avanço, tem na figura circular o movimento de translação para a frontalidade e o seu interior é um ecossistema da planura integrado num invólucro de circularidade.
A espiral, enquanto movimento, está presente nas torções e nas forças associadas às quedas das naves. A perspetiva é figura associada, sob a forma do ponto de vista, preconizando o ver o sentir das tensões, desenhando a convulsão do céu e o varrimento do abstrato.
No tesseracto, a multidimensionalidade é forma e figura, é o tempo representado como espaço, instantes, momentos, anos, temporalidades entrecruzadas, os múltiplos passados e presentes futuros, lugar de interação dos pensamentos, das intuições das presenças, da percepção dos intelectos, da dedução das razões.
É uma figura sempre em movimento, uma forma evanescente e em permanente construção, é a linha das linhas temporais, o tempo dos tempos simultâneos e o tempo dos tempos possíveis e impossíveis, é o deslizamento das fantasmagorias das existências, sempre uma ou outra, sempre milhões delas e outros biliões delas (são os passados/presentes/futuros múltiplos que afinal só se passam num quarto, mas que foram/são/serão sempre da ordem da infinidade).
Nele se resolve a narrativa das dúvidas, da ligação quebrada que se requebra e religa por torção da sua geometria. É pela percepção que Cooper e Murph – em dimensões espácio-temporais diferentes, mas sintonizados numa mesma (inconcebível, inexplicável, espiritual, sua) dimensão – se conseguem comunicar, religar, metafisicamente tocar.
Do mais íntimo para o mais grandioso, do humano para o pós-humano, da incomunicabilidade para a comunhão multidimensional, INTERSTELLAR é tanto da ordem do sentido como da ordem do especulativo. Propõe a emoção e propõe a questionação. Afinal, como é que nos sentimos uns aos outros, como temos nos outros esse sentido do comunicacional, como com eles nos ligamos. Por outro lado, como é que nos projetamos no que está para além da vista, o que está para lá do que conseguimos calcular, o que está a anos-luz e espaços tremendos para além do que conhecemos. Entre o interno e o externo, INTERSTELLAR questiona.