25 de Abril

João Canijo – Cinema de (des)enganos

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I Uma carreira com prazo

Nos anos noventa, era descrito como um realizador cujos filmes eram “feitos a brincar, num fim-de semana, por um realizador que conseguiu ter em devido tempo o dinheiro e os atores para isso.” Esta é a impressão com que o Jornal de Letras ficou acerca da segunda longa-metragem de João Canijo, que anteriormente já tinha sido mal recebido pelos críticos. O início de carreira de Canijo, marcado por três pilares essenciais – a sua encenação na peça Jogos de Praia, na longa-metragem de Manoel de Oliveira, Francisca, e a participação em State of Things de Wim Wenders –, parecia ter prazo de validade. É interessante notar que alguma da crítica falhou por completo na previsão da evolução cinematográfica da filmografia de Canijo, ao entrar numa contradição flagrante anos depois. De Três Menos Eu (1988) até Sapatos Pretos (1998), entre diversos críticos, parece existir uma concordância em rejeitar as personagens de João Canijo. No entanto, em registos mais recentes vemos Noite Escura (2004) e Sangue do meu Sangue (2011), se não a liderar, pelo menos a participar na lista de melhores filmes portugueses dos últimos 25 anos, segundo críticos do Jornal de Letras. Pode ser um caso de envelhecimento enológico, e não nego a possibilidade, mas também à equação junta-se a falta de compreensão ou precisão de alguns críticos. A falha não está exatamente na previsão ou no mérito dos críticos, mas na maneira como as obras de João Canijo parecem ser rejeitadas por motivos insustentáveis e insuficientes. Talvez esta posição não venha de uma incompreensão do Cinema e da sua forma técnica. Talvez o mais provável é a critica negativa a que João Canijo foi sujeito provir de um desentendimento dos comportamentos e linguagem das suas personagens, nomeadamente a dimensão psicológica das mesmas.

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Fonte: Sapatos Pretos (João Canijo, 1998)

II – Marginalização

Quando, em 2013, é entrevistado para a EnFilme (plataforma de críticas e entrevistas espanhola), acerca da sua relação com o realismo social, João Canijo defende que o que realmente lhe interessa é o realismo das relações humanas e a condição emocional do individuo. Agora, com a passagem do tempo, conseguimos perceber que todas as figuras criadas, ou melhor, transportadas, para o seu cinema têm algo em comum. Não se trata de uma novidade, mas é certamente algo que a crítica nos anos 90 ainda não poderiam prever. Na entrevista em questão o autor explica o porquê de escolher, por regra, uma paisagem humana marginalizada para as suas obras. Citando o nome do filósofo Arthur Schopenhauer, Canijo explica que em prol de decifrarmos as nossas emoções é necessário que a luta pela sobrevivência esteja subtraída das nossas preocupações básicas. E como em casos de marginalização o mesmo não se sucede, as emoções destes são mais imediatas, epidérmicas. Não enganam.

Além da filosofia de Schopenhauer, o cinema de Canijo é muito influenciado pelo português José Gil, na forma como a realidade social de Portugal é retratada e suportada pelas personagens. Em Fantasia Lusitana, é notória a contribuição de José Gil para desenvolver a ideia das duas realidades de Portugal. O documentário de 2010, apesar de ser uma obra tardia no percurso de Canijo, serve como ponto de referência às convicções que o autor já teria mostrado, indiretamente. Para si, Portugal é sujeito a duas verdades: o mundo em guerra e a fantasia do país neutral, o mito criado por Salazar. Este pensamento poderá entrar no ambiente das personagens de Canijo de forma indireta através de metáforas. Portanto, as personagens inserem-se nessa identidade cultural pautada pelas condições financeiras e habitacionais desfavoráveis, contrapondo com o mito salazarista da fraternidade, disciplina e do “bom pobre”.

Como qualquer autor principiante, João Canijo parecia carecer de referências além de Lisboa e Paris (tal como as suas maiores referências, que sofriam do mesmo problema) assim como deficiências na pesquisa de realidades com as quais não está familiarizado. Três Menos Eu e Filha da Mãe são exemplos disso. Não existe um ambiente característico ou propício que leve às ações repentinas que Rita Blanco interpreta em ambos os filmes. A emoção epidérmica principia-se, existe uma necessidade de quebrar a inocência, uma aproximação ao Mal através da presunção do Bem, independentemente de haver traição ou morte, mas os motivos parecem insuficientes.

Uma coisa que parece insólita é o facto de Dalila (Ana Bustorff) ser uma das primeiras incompreensões para a critica. A personagem principal de Sapatos Pretos decide vingar-se do marido, de quem sofre violência doméstica. No entanto, a crítica chegou a apontar que as atitudes da personagem não eram por si explicadas e que, portanto, não tinham fundamento ou profundidade. Num contexto real, não seria necessário questionar uma vítima de violência doméstica sobre o porquê de sentir necessidade de se vingar do parceiro. A maneira de reagir pode parecer absurda, ou repentina, mas, as emoções servem apenas como reação quando há direitos que estão em perigo. O que nas primeiras duas longas do autor não parece acontecer.

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Fonte: Filha da Mãe (João Canijo, 1990)

III – O amor incondicional, o incesto e a morte

No caso da violência doméstica de Sapatos Pretos, o espetador consegue ainda encontrar uma racionalização nos atos vingativos de Dalila. Apesar das cenas gráficas, existe um conforto em ter acesso a tudo, à agressão do marido, o encontro desta com o seu amante, o planeamento e a morte praticada. Existe um motivo claro, um conflito “simples” de resolver e parece tudo feito às claras com três personagens. No entanto, João Canijo desafia-se a si próprio, ao acrescentar mais figuras e um elemento especial: o papel da mulher enquanto mãe. Com mais personagens, o conflito inevitavelmente adensa-se, ao ponto de, em Sangue do Meu Sangue, existirem cenas com falas sobrepostas entre grupos da família, como também o amor incondicional de uma mãe toma espaço. Outro tema correlacionado com o amor de família, ou a sua ausência, é o incesto.

                III.I – Teatro ∩ Cinema

Antes de perceber como as temáticas preferidas de Canijo influenciam a maneira como o seu cinema se constrói e como essa escolha não é no fundo uma opção, é preciso reconhecer as referências na raiz. Antes de ser cineasta, João Canijo fez teatro como ator e posteriormente como encenador. Como tal, não só o trabalho de direção que o cineasta tem com os atores e a maneira como ele os coloca em cena é manipulada pela visão teatral, como também as temáticas são inspiradas pela cultura grega. O autor já teria confessado que tenta encenar as peças como se estivesse a realizar um filme e a mesma correlação para o caso oposto. Sangue do Meu Sangue e Três Menos Eu talvez sejam os filmes onde mais facilmente se percebe a intenção de colocar o espetador a observar a cena de frente. João Canijo alarga o campo de visão ao máximo que o set lhe possibilita, de forma a por momentos estarmos na presença da totalidade de um palco e seus intervenientes. Existe uma tentativa de anular a existência de um contra-campo. O cineasta aproveita momentos em que mais do que um conflito está presente para os representar com o mesmo grau de presença no ecrã. Em Sangue do Meu Sangue existe o conflito que envolve Ivete (Anabela Moreira) e o seu sobrinho Joca (Rafael Morais) e também o drama maternal entre Márcia (Rita Blanco) e Claúdia (Cleia Almeida), o que leva a que diálogos entre personagens se sobreponham e a cena se preencha com diferentes pontos de atenção à escolha do espetador. Algo parecido é necessário acontecer em Três Menos Eu, quando Rita (Rita Blanco) precisa descobrir o que aflige a sua prima Anne (Anne Gautier) e o seu namorado (Pedro Hestnes), e enquanto uma conversa privada acontece entre o casal, Rita acompanha-os contornando o exterior da casa. Canijo faz recurso ao plano geral e por vezes à organização dos três terços do plano de forma que haja um palco em que não só temos acesso a uma realidade como também a outras em seu redor, num único plano. O que pode levar a uma consciencialização do mal-estar geral e o seu isolamento num local apenas, como parece ser o caso do café de Mal Nascida.

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Fonte: Mal Nascida (João Canijo, 2007)

III.II – Mito de Electra

Vindo do teatro, Canijo inspira-se na cultura grega, através dos nomes de Sófocles, Eurípides e Ésquilo. Novamente com a singular presença de Anabela Moreira como personagem principal, em Mal Nascida, existe uma tentativa em representar o estado de espírito de Electra. Segundo o mito, a princesa de Micenas, levada pela fúria, decide vingar a morte do seu pai Agamemnon, provocada pela sua mãe, Clitemnestra e seu amante. Ao perceber que não o consegue sozinha, induz o seu irmão Orestes a assassinar a mãe e o padrasto. Além do mito mostrar o que uma filha é capaz de fazer por vingança, Electra também transporta consigo um complexo, mais tarde adaptado por Freud e Jung. Numa versão feminina de Édipo, Electra dedica-se ao seu pai, é-lhe fiel e tenta aproximar-se dele, levando a um possível afastamento da própria mãe. Este desejo, tendencialmente, desaparece com o crescimento das jovens, com a consciência das diferenças entre um amor paternal e um amor romântico. Mal Nascida preenche todos os requisitos para uma característica adaptação do mito. Mostra uma dimensão de referências do interesse de João Canijo, que dá vontade de explorar pelos restantes filmes. Isto é, existe mérito na coerência do mundo de João Canijo e respetivas camadas – um ato inaceitável e desumano, que é feito num contexto a que os envolvidos estão sujeitos, uma vingança é iniciada, até que haja um desfecho em que o Mal perdura em prol do Bem subentendido, quando à partida nunca se teve a noção do que implica o Bem e o Mal.

Torna-se redundante escolher exemplos da realidade de Canijo quando as personagens parecem todas provir de complexos psicológicos parecidos, que, inevitavelmente, apesar de conflitos diferentes, levarão a soluções semelhantes. É nas soluções que, em parte, o cinema de João Canijo se faz encontrar entre a cultura grega e o dramático incesto de Eça de Queirós. Em Os Maias, Carlos Eduardo descobre que se teria envolvido secretamente com a irmã Maria Eduarda, de quem, mesmo assim, se mantém amante. Antes dessa obra, Eça já tinha escrito sobre um romance incestuoso entre a mãe, Genoveva, e o seu filho, Vítor, em A Tragédia da Rua das Flores. Lúcia (Anabela Moreira), em Mal Nascida, espera impacientemente, vingar a morte do seu pai e vê como segunda solução envolver-se com o irmão (Gonçalo Waddington). Em Sangue do meu Sangue, Claúdia (Cleia Almeida) descobre através da mãe que, sem saber, se andava a envolver com o próprio pai (Marcelo Urgeghe). Não se trata de apenas mais uma história sobre incesto. Mas sim, em que o Incesto é uma temática trabalhada em prol da verdade do autor. Ao ler-se o Incesto de Eça, não se fica a conhecer melhor o Incesto de Canijo. Aqui, ele é usado a favor do contexto social e emocional em que a personagem se coloca. Não existe forma de não retornar à marginalização sem compreender esta temática. O incesto é um descarrilamento de muitas das personagens de João Canijo, provocado por diversos défices – esteja ligado ao complexo de Electra (por necessidade de proximidade com a figura paterna), por desconhecimento, por circunstâncias do momento, ou, principalmente, por ser das poucas soluções que restam. O que diferencia Eça de Canijo é que as personagens deste último estarão sujeitas à ilusão de optar por uma destas opções:  Amor Incondicional, Incesto ou Morte. Quando todos são dependentes entre si.

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Fonte: Noite Escura (João Canijo, 2004)

IV – Mulher em Canijo

Quando a inocente Sónia (Cleia Almeida) sobe ao palco e o pai a intitula de “vozinha de pomba”, é impossível conseguir compará-la à coragem de Irene, tia de Sangue do meu Sangue, que se sujeita a sacrificar o seu corpo em defesa do seu sobrinho, ou à prontidão de Lúcia que tem na sua cabeça matar o próprio pai por vingança, em Mal Nascida. No entanto, a inocência da personagem principal de Noite Escura lembra Rita em Três Menos Eu, que chucha ainda no dedo quando dorme, ou Cláudia em Sangue do meu Sangue que não entende o quão poderá ser perigoso trair o seu namorado com um homem mais velho.

O que une cada personagem a um destes grupos não é a faixa etária a que corresponde, mas sim a maneira como trabalha com o seu amor incondicional. Canijo, além de dar a possibilidade de cada mulher agir com um amor do tamanho de uma mãe – sem necessariamente o ser -, abre espaço para esse amor corresponder a alguém que não um filho. Sónia canta, no palco da casa de alterne dos pais, Quando eu nascer outra vez,/Quero nascer sem idade/Filha da mãe que me fez/E de um homem sem maldade, desconhecedora de que, após a atuação, o pai a venderá a um sócio. A irmã mais velha, por amor, tenta proporcionar-lhe uma fuga, atraindo o pai e eventualmente dando uso à violência sem que a irmã perca a inocência. Esta situação parece morrer e renascer vezes sem conta, pois vemos em Filha da Mãe e Sangue do Meu Sangue um semelhante socorro acontecer.

Em Fátima, filme que retrata o percurso de onze mulheres até à cidade religiosa, as figuras femininas, apesar de não terem espaço suficiente para aprofundar as suas crises pessoais, juntas resumem a força e dedicação que João Canijo pretende demonstrar com o seu cinema. A sua fé e a de Canijo não estão em acompanhar um grupo de mulheres corajosas, mas sim, em acreditar que todas as mulheres poderão ser o pilar essencial de um grupo em peregrinação, de uma família portuguesa, de uma pátria, em que cada mulher renasce numa esquina marginalizada, mas sempre sem a certeza de lá voltar para morrer. Ou então tudo isto não passa de um trauma salazarista de que Canijo crê que o povo português ainda padece, de tempos a tempos.

O retrato da marginalização a que qualquer ser humano pode estar sujeito é, talvez, o elemento que une a maior parte da filmografia de João Canijo. Curiosamente, os filmes em que essa tónica não é tão evidente e em que o autor procura uma visão mais etnográfica foram os que tiveram uma receção mais frágil, como é o caso de Fantasia Lusitana, Portugal – um dia de Cada Vez e É o Amor. A coerência na exploração do tema é um ponto positivo, mas que poderá virar-se contra o cineasta por poder parecer limitativo das capacidades de representação de realidades diferentes a que o autor estaria, igualmente, capaz. Porém, provavelmente causaria estranheza entre os espetadores e estaria mais distante da sua identidade como cineasta.

Relativamente à crítica, continuo a concordar com a ideia de que o cinema de João Canijo não se mantém unicamente vivo por auxílio de grandes atores e não precisa necessariamente de seguir novos caminhos. Apesar do seu cinema não enganar, é caso para dizer que a crítica o rotulou de forma precipitada, e isto não deve ser alvo de julgamento, mas sim um exemplo em como um autor não deve sofrer de uma convicção definitiva na sua primeira obra.

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