Os canais de televisão TVCine 1 e TVCine 2 exibirão esta semana (dias 31 de outubro e 1 de novembro) o formidável documentário “John McEnroe: o Domínio da Perfeição”. Esta é a terceira longa-metragem de Julien Faraut, na qual o cineasta francês se ocupou também do argumento e da fotografia.
Este documentário, que é narrado por Mathieu Amalric (ator em “O Escafandro e a Borboleta”, belíssimo filme de Julian Schnabel), participou na secção “Fórum” da Berlinale 2018. Por cá, o filme competiu no LEFFEST’18, tendo sido distinguido com o “Grande Prémio do Júri – João Bénard da Costa” pelo seu carácter revolucionário.
Em artigos e críticas, este filme é frequentemente – e infelizmente – definido como “um documentário sobre John McEnroe”. No entanto, fraseá-lo dessa forma não podia estar mais longe da verdade. Tal discurso reduz um filme que na verdade é tanto sobre McEnroe, como é sobre ténis. Um filme que é tanto sobre ténis, como é sobre cinema.
O título original do filme (“L’empire de la perfection”) comprova precisamente que este é mais do que um documentário desportivo, ao não mencionar o nome de McEnroe. A definição atrás citada é adequada apenas na medida em que a vertente tenista do documentário tem por figura John McEnroe. Porém, há uma segunda vertente de grande relevo que se prende com o cinema – abordemos este assunto mais à frente.
O documentário abre com excertos de antigos vídeos de instrução destinados a iniciantes no ténis. Ora basta uns minutos para se constatar que estas curta-metragens – que na década de 70 eram o material de referência no que toca ao ensino do ténis – estavam longe do ideal: demonstrações demasiadamente coreografadas e mecânicas, para não dizer algo patéticas.
Gil de Kermadec, então Director Técnico Nacional do Ténis em França, decidiu que chegara a hora de criar um material didático de maior qualidade. Bastava de encenações, era necessário filmar o desporto como ele era efectivamente jogado. Neste sentido e com o consentimento da Federação Francesa de Ténis, Kermadec filmou de 1977 a 1985 o Torneio de Roland Garros com a sua câmara de 16mm. O resultado foi uma série de novos vídeos de instrução, cada um focado num tenista de renome diferente.
Avancemos cerca de quarenta anos: Julien Faraut, cineasta e gestor do arquivo do INSEP (Institut National du Sport, de L’Expertise et de la Performance), depara-se no vasto acervo da instituição com todo o material filmado por Kermadec. Um tenista em particular desperta o interesse de Faraut: John McEnroe, mítica figura do ténis e o número 1 do mundo no ranking ATP de singulares aquando das filmagens de Kermadec.
Por um lado, Faraut fica estupefacto ao encontrar partidas de ténis dos anos 80 filmadas em película – uma verdadeira raridade! É que as câmaras que os canais televisivos usavam na década de 80 não eram câmaras de cinema, como a câmara de 16mm de Kermadec.
Por outro lado, fica fascinado com o modo único com que Kermadec filmava cada partida: o enquadramento não abrangia todo o court como estamos habituados, mas única e exclusivamente um dos dois tenistas em campo. O foco não é no duelo, mas sim no movimento, na técnica. Como nunca vemos o seu adversário, ficamos com a impressão de que o jogador está a disputar a partida consigo mesmo – uma ideia que bem se aplica à aparente luta interna de John McEnroe com o seu temperamento explosivo.
Ora é fácil acusar Faraut de não ter feito mais do que encontrar as filmagens de Kermadec. Falso. O mérito de Faraut é tremendo e passa, primeiro, por se ter apercebido do seu valor e por tê-las ressuscitado do esquecimento em que caíram – para não falar de que certas gravações usadas por Faraut no seu documentário não chegaram a ser incluídas nos vídeos de instrução de Kermadec, o que faz delas material inédito para o público. Segundo e recuperando a vertente cinemática atrás referida, Faraut não se fica pela óptica do ténis e decide fazer também uma ponte para o cinema.
Para o alcançar, socorre-se de dois conterrâneos: Jean-Luc Godard e Serge Daney. Ambos grandes fãs de ténis, ambos críticos de cinema da influente revista “Cahiers du Cinéma”. Enquanto o primeiro mais tarde enveredou pela realização, o segundo expandiu os seus escritos do cinema ao ténis. Faraut partilha as reflexões de ambos sobre o desporto e ainda uma famosa citação de Godard: “le cinéma ment, pas le sport” (o cinema mente, o desporto não).
A ponte é cimentada com a forma impressionante como Faraut tira partido do material à sua disposição, recorrendo a técnicas frequentemente usadas no cinema. Nomeadamente, Faraut faz uso da repetição com grande impacto. Em dado momento do filme, McEnroe prepara-se para servir. O serviço que se segue será exibido ao espectador uma e outra vez, sempre de um ponto de vista diferente. Kermadec obtivera autorização para realizar as suas filmagens com múltiplas câmaras e equipamento de som (num dos momentos mais caricatos do filme, McEnroe ameaça dar uma raquetada no microfone). Graças à sua decisão de colocar câmaras em diversos pontos do court, Faraut tem a seu dispor quarenta anos depois diferentes perspectivas de um só evento. Na montagem com Andrei Bogdanov (o editor do documentário), o realizador optou precisamente por reproduzir todos esses ângulos – de novo o paralelismo com a sétima arte, desta feita com os vários ângulos usados no cinema.
Faraut recorre também a slow motion com grande eficácia. Permite ao público absorver a beleza do ténis e o talento de McEnroe, e oferece uma forma única de experienciar um desporto que é tão veloz.
A paixão de Faraut pelo cinema é evidente nas várias referências cinemáticas ao longo do filme, particularmente nas seguintes: o segmento sobre Tom Hulce e a sua inspiração em John McEnroe para interpretar o papel de Amadeus Mozart, no filme “Amadeus” de Milos Forman; um excerto de diálogo do filme “O Touro Enraivecido” (realizado por Martin Scorsese em 1980) é sobreposto a um clip no qual um raging McEnroe discute com o árbitro – o resultado é hilariante. São referências deliberadas, que estabelecem a analogia entre o génio de McEnroe e o génio de Mozart, a violência de McEnroe e a violência de Jake LaMotta.
Por último, uma menção rápida mas merecida à banda sonora. Enquanto parte é original ao filme, outra parte recorre a ícones do punk rock – The Ramones, Black Flag, Sonic Youth – como música de fundo para as partidas de ténis. O jogo torna-se uma autêntica ópera rock. A música replica o tumulto interior de McEnroe, o turbilhão de emoções que atravessa e, no fundo, a tensão da partida.
Num diagrama de Venn, “John McEnroe: o Domínio da Perfeição” seria a intersecção de Ténis e Cinema. Simultaneamente um filme para fãs de ténis – que todavia não requer da audiência qualquer conhecimento prévio sobre o desporto ou sobre McEnroe – e um filme para cinéfilos. Julien Faraut construiu um formidável documentário com base em belíssimas filmagens em 16mm, tecendo um paralelo improvável mas soberbo entre o ténis e o cinema. O tenista é o realizador, a partida é o filme, cada ponto uma cena.