«Julieta» – O amor segundo Almodóvar

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Pedro Almodóvar é, claramente, um realizador obcecado pela beleza – o exemplo máximo desta obsessão e da sua concretização mais plena encontramos em Frederico Fellini. Almodóvar já mostrou, em filmes anteriores, que tudo que entra nos seus enquadramentos é escolhido ao pormenor: os rostos bem desenhados, a roçar a perfeição; os olhares intensos, expressivos; a coloração viva dos cenários que são pintados tão dignamente quanto as personagens. A beleza está em todo o lado e “Julieta” não é excepção

Julieta (Emma Suárez), após um encontrado casual com uma antiga amiga da sua filha Antía, decide cancelar a sua viagem para Lisboa e instalar-se no antigo apartamento onde viveu com Antía, com quem não tem contacto há doze anos, para escrever-lhe uma carta onde deposita todo o seu afecto, que transparece um infindável amor, mas também uma culpa na mesma proporção.

Julieta luta com o seu passado, remexendo as memórias mais dolorosas, à procura do instante em que supostamente falhou. É esta culpa dilacerante que perpassa todo o filme e que tanto Alice Munro (autora de “Fugas”, antologia de contos que deram origem ao argumento) como Almodóvar querem explorar, mas não sem questionar a natureza deste sentimento. O amor puro, pleno e completo que habita uma mãe é sempre heroico, ao ponto de absorver para si toda a culpa, toda a dor. E só o ser mãe poderá trazer uma compreensão desta mesma valentia e dessa irónica e misteriosa prerrogativa feminina, de através de uma grande dor dar ao mundo o amor. Se é a natural superproteção que garante a preservação da vida, a separação será sempre uma dor tão forte quanto a da chegada ao mundo, desde a pequena distância no supermercado, até ao cruel desaparecimento de uma das partes. É a insuportabilidade da separação, da ausência, do não saber, que corrói a alma como uma ferida eternamente aberta, que Julieta começa a cicatrizar com a escrita da sua carta. E é ainda a separação que podemos ver no mar, que é um dos símbolos centrais do filme, o mar onde as pessoas flutuam sobre forças tão fortes e intensas que têm tanto a potencialidade de juntar como a de separar eternamente.

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O cinema de Almodóvar é um cinema do cuidado. É visível, nos seus filmes, como o amor se torna gesto: um pequeno amparo em alguém que caminha com dificuldade, uma carícia, até à entrega total no cuidado ao outro, onde a vida, aos poucos, se escoa. Cada personagem, mesmo a que nos aparece mais maléfica, torna-se um bordão vital que traz dentro de si a centelha de um bem radical, e a moral fica baralhada ao percebermos como os supostos vilões afinal agem por um amor transbordante, por uma marca intensa do passado que ficou incrustada na sua alma ou por uma ingenuidade juvenil. O mal nunca pode ser radical. Nos filmes de Almodóvar, o amor é sempre o princípio e o fim de toda a acção humana.

Há cineastas que possuem uma identidade tão forte que as oscilações técnicas do seu estilo tornam-se menores, quase insignificantes, pois sabemos que algo de denso irá ser transferido para as suas imagens. Em Almodóvar, há sempre uma espessura de humanidade que nos cancela o lado mais analítico para fazer entrar um olhar emotivo, e por isso é um cinema que derruba qualquer vontade crítica, como se possuísse uma dignidade outra, que está dentro do filme mas que o transcende, e essa nova realidade brilha como se fosse intocável. O que podemos dizer mais? “É um Almodóvar…”

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Argumento: Pedro Almodóvar (guião), Alice Munro (baseado nos contos “Destino”, “Pronto” e “Silêncio”)
Elenco: Emma Suárez, Adriana Ugarte, Daniel Grao
Espanha/2016 – Drama, Romance
Sinopse: Julieta é uma mulher de meia idade que está prestes deixar Madrid para viver em Lisboa, com o namorado Lorenzo. Entretanto, um encontro fortuito na rua com uma antiga amiga da sua filha, com quem já fala há mais de uma década, fazem-na desistir da mudança. Regressa ao antigo prédio em que vivia e lá começa a escrever uma carta para a filha, relembrando o passado entre ambas.

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