Escrever sobre um filme implica captar uma sensação para a traduzir em palavras. Isto quer dizer que existe um tipo de sensação especificamente fílmica. A maior dificuldade da crítica esconde-se precisamente na qualidade desta sensação. Porém, frequentemente, o crítico precisa assumi-la com alguma evidência. Assim que acabei de ver «Laranjas Sangrentas» (Oranges Sanguines, 2020), de Jean-Christophe Meurisse, esta questão ganhou mais força.
Laranjas Sangrentas conta a história de um casal de idosos que decide participar num concurso de dança para pagar uma dívida ao banco. As restantes personagens gravitam em torno do casal: o filho, um advogado que pretende ascender socialmente; um ministro das finanças fraudulento; um assessor que ama toda a gente; uma adolescente a tentar descobrir-se a si mesma, e um psicopata que vive com um javali.
O filme desenrola-se dentro deste emaranhado narrativo e pretende expor, de uma forma directa – demasiado directa? -, as maldades humanas que habitam o quotidiano. Meurisse consegue passar com máxima clareza – mas com mínima subtileza – a sua mensagem: todo o ser humano é corrupto até aos ossos. E existe uma inegável eficácia na forma como a transmite ao espectador, com recurso ao cinismo mais puro e ao sarcasmo mais mordaz. Mas, se o filme funciona perfeitamente ao nível da crítica social, a verdade é que em nenhum momento senti o filme. A única sensação que se mantém é o constante esforço de compreensão que o filme exige e que nos obriga a passar por cima do filme. O que falta sentir é essa sensação especificamente fílmica.
Apesar de reconhecer toda a pertinência do argumento, da crítica social que veicula, e de lhe reconhecer todo o interesse enquanto objecto intelectual, é difícil sentir o filme quando este se torna numa porta aberta, escancarada para a sua mensagem. Existe nele ternura, se pensarmos na trajectória trágica do casal de idosos. Contudo, é inevitável pensar na semelhança com «Amour», de Michael Haneke, onde encontramos essa ternura, espraiada na matéria fílmica. Os elementos formais tornam-se, eles mesmos, ecrã, criando uma superfície fílmica que não existe por defeito na imagem.
Em «Laranjas sangrentas», é o argumento que faz mover o filme, não conseguindo alcançar essa qualidade de superfície, onde subtilmente se colocariam as ideias. No final, a única sensação que fica é que Meurisse consegue passar a mensagem, mas não consegue passar o filme.