É difícil escrever sobre “High Life”. Também não se esperaria outra coisa, considerando a sua proveniência. Sendo um filme de Claire Denis, mantém a particularidade de ser muito próprio e, como consequência, difícil de definir; à semelhança da sua restante obra.
Porém, diverge do seu imaginário habitual em vários pontos: 1) é o seu primeiro filme passado integralmente no espaço sideral, com apenas duas cenas na Terra; 2) é o seu primeiro filme em inglês, facto que Denis justifica de uma maneira simples, ao referir que o argumento lhe surgiu naturalmente nessa língua, por não imaginar pessoas a falarem francês no espaço; e 3) é o seu primeiro filme, e o primeiro da história do cinema (corrijam-me se estiver enganada), a incluir uma fuckbox no interior de uma nave espacial.
A premissa é simples. Algures no futuro, o governo dos E.U.A. dá a opção aos condenados à pena de morte de escaparem através da prestação de serviços à Ciência, nomeadamente através do seu envio numa missão até aos confins do espaço, onde deverão registar a pressão gravitacional de buracos negros. Já a bordo da nave, não tardam a aperceber-se de que esta opção implica a sua inevitável morte, à semelhança da pena inicial, uma vez que o seu retorno à Terra não está contemplado na experiência. Não sendo uma premissa particularmente distinta, adquire densidade após as cobaias se aperceberem de que estão por sua conta.
A Dr.ª Dibs (Juliette Binoche, no papel mais perturbador da sua extensa filmografia), cientista obcecada com reprodução e criminosa à semelhança dos seus pares, pretende a criação de um bebé perfeito, nascido no espaço. Vê o seu desejo cumprido com o nascimento de Willow, fruto da inseminação artificial de Boyse (Mia Goth) com fluídos corporais furtados de Monte (Robert Pattinson).
Abra-se um parêntesis aqui: Pattinson lutou e lutou por este papel, tendo perseguido (palavras do próprio) o casting pelas várias cidades por onde foi passando. Após visionar “White Material”, de Denis, decidiu que teria necessariamente de trabalhar com a realizadora, desejo que pôde finalmente concretizar na sua primeira incursão pela língua inglesa.
Willow cresce e desenvolve-se na nave, rodeada do nada, a longínquos anos-luz da Terra. As suas referências do planeta são obtidas através de um televisor minúsculo, único ponto de contacto com a Terra, que mostra imagens arbitrárias da natureza e de pessoas.
Denis, e os seus co-argumentistas Jean-Pol Fargeau e Geoff Cox, são ambiciosos ao retratar uma Willow adolescente que responde de forma torta ao pai – mesmo sem as provações características da idade que promovem esse comportamento; que reconhece os cães como potenciais animais de estimação – apesar de nunca ter visto nenhum; e que é crente – sem nunca ter lido nenhum livro religioso ou atendido qualquer cerimónia clerical.
Assim, emerge a conceção de que o Ser Humano possui características que lhe são inerentes, que dependem em absoluto do seu meio envolvente e que contribuem para nos diferenciar enquanto espécie. Mesmo sendo ateia, não pude deixar de me sensibilizar na cena em que Willow junta as mãos e reza; mesmo no isolamento quase absoluto, rodeada do nada, sem influências, ela encontra e acredita em algo.
Outro aspeto que me sensibilizou foi a transformação de Monte, que se torna evidente numa das cenas finais. Embora não se me afigure que a intenção de Denis fosse pronunciar-se acerca da legitimidade da pena de morte, não pude deixar de refletir na sua ilicitude após constatar a reabilitação moral de Monte após anos de servidão a bordo da nave. Ansiei pelo seu escape, ansiei pela restituição da sua liberdade; direitos que lhe tinham sido irrevogavelmente privados, sem justificação (que nunca poderá haver).
Além do conteúdo, também a estrutura do filme assume contornos pouco convencionais. Optando por iniciar a narrativa in media res, Denis opta por cruzar eventos atuais e passados sucessivamente. Não se tratam de flashbacks, uma vez que estes implicam um eixo temporal predominante que, neste caso, é inexistente. Passado, presente e, no momento final, futuro, vão-se substituindo mutuamente, de forma fluída e natural. É propositadamente desconexo, adequado às próprias modificações do tempo características das viagens espaciais.
É uma obra que tem sido comparada com “Solaris”, de Tarkovsky, e com “2001: Odisseia no Espaço”, de Kubrick. Sinceramente, embora possa conter alguns elementos emprestados de um e do outro (a estética retro da nave, por exemplo, que lembra o primeiro), é um filme de Claire Denis, ponto. Julgo que o seu estilo próprio ainda carece de um termo específico. Impõe-se, pois, a criação de um termo que faça jus à mestria da realizadora. É um filme denissiano. Dada a indefinibilidade da obra, é mesmo a única palavra que poderá ser adequada. A partir daqui se reconhece que apenas se pode esperar o inesperado.