«Les Garçons Sauvages» – O Surrealismo Queer

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“Les Garçons Sauvages” é apresentada como a primeira longa-metragem de Bertrand Mandico, que até agora se tinha ficado pelas curtas, médias e pequenos ensaios experimentais. A atmosfera bizarra e a sensação de estranheza provocada pelas suas obras não ficou de lado neste novo trabalho.

O filme é uma adaptação do romance de William S. Burroughs publicado em 1971 “The Wild Boys: A Book of the Dead” no qual as ligações do autor com a crítica social, a magia e o ocultismo estão bem presentes. Estas características são diretamente transcritas, talvez até enfatizadas, na adaptação cinematográfica de Mandico. Perceciona-se uma viagem ao mesmo universo surrealista descrito no livro, assim como aos temas da androginia, do erotismo e do polimorfismo sexual, que, em conjunto com os cenários surrealistas, são a linguagem visual utilizada pelo realizador.

Através deste ambiente particular, percebe-se a mensagem de suporte relativamente à procura, experiência e liberdade de escolha naquilo que são desejos recorrentemente ocultos e temidos, por não irem de encontro aos preconceitos estabelecidos pela sociedade. Percebe-se a vontade de quebrar os tabus, ainda existentes, relativos às questões de género e aos seus limites e conceções do cinema.

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A obra segue uma narrativa clássica, na qual o devaneio de referências a obras cinematográficas, de diversos tempos e origens, é interminável. A exposição inicial do enredo, mostra um ser humano andrógino deambulando por uma ilha, e é a partir desta que a narrativa se desenvolve como uma extensa analepse narrada por este personagem perdido: Tanguy.

Este fazia parte de um grupo de rapazes de famílias abastadas que idolatravam uma espécie de espírito, Trevor, cuja influência colmatava em atos de extrema violência e erotismo exercidos pelos mesmos. Após a encenação do julgamento, os meninos saem ilesos levando os pais a procurarem alternativas de punição e correção. Assim, acabam por ser enviados para uma viagem com o misterioso e másculo Capitão, conhecido por domar jovens rebeldes.

Aqui, a cena na qual se mostra a montagem da viagem de barco com os olhos no céu a vigiarem os rapazes é uma ligação direta à adaptação cinematográfica do livro de George Orwell “1984”. A viagem trouxe humilhação, sofrimento e tortura, mas também o fascínio pela ilha encontrada. A ideia de partir na aventura, da exploração só por si, dita que se aproxima um processo de busca de identidade, de procura e descoberta de alguma coisa que até aquele momento era desconhecida.

É a ilha paradisíaca que vai espoletar a descoberta e autorreflexão. Esta simboliza a mudança e a metamorfose dos rapazes, sendo que o ecossistema sexualizado é a metáfora para a busca da identidade sexual dos adolescentes que viviam sufocados no mito da masculinidade.

A ilha acaba por ser, ela mesma, um organismo vivo, e, assim, um personagem presente e importante em todo o filme. A sua vegetação sexual é extremamente sedutora para os jovens rapazes que ficam completamente viciados naquela fauna rica e variada, com as suas frutas estranhas e plantas masturbadoras. Esta atmosfera relembra recorrentemente o filme de 1963 de Ishiro Honda, “Matango”.

Os rapazes acabam por descobrir o segredo surpreendente do seu capitão: um seio. Assim, quando a sua sexualidade começa a mudar em consequência do seu consumo constante de frutas vaginais, percebe-se, simultaneamente, o que se está a passar com os rapazes e o que se passou, no passado, com o capitão.  Fica temporariamente em aberto a questão do capitão só ter um seio, mas, com a estagnação da metamorfose de Tanguy e a sua decisão de ficar na ilha, esclarece-se este procedimento.

É ainda mais esclarecedor quando, na cena pós-créditos, se vê Tanguy a encontrar um cão que se imagina que viria a ser seu companheiro da mesma forma que o falecido cão do capitão foi. Os filmes experimentais de Kenneth Anger, “Fireworks” e “Eaux d’Artifice” são automaticamente lembrados pela sua ligação aos conceitos de repressão e libertação da identidade sexual.

O facto de serem atrizes a interpretar o papel dos rapazes em mutação, enfatiza a ideia da metamorfose narrada no filme e a sua ligação com uma mudança não só de sexo, mas de mentalidades, na qual a mulher tem um papel preponderante na influência e mudança exercida sobre o outro.

Chega até a ser irónico o facto de, no final, permanecer a premissa do rapaz que não se conseguiu transformar totalmente numa mulher, Tanguy, querer mudar os futuros homens, tornando-se capitão. Este ato reflete a tristeza de não ter conseguido chegar ao seu apogeu desejado, o feminino, e talvez a ideia de que não temos necessariamente de escolher uma identidade sexual definida.

Talvez como o Capitão e, mais recentemente, Tanguy, na nossa indefinição, possamos continuar a mudar mentalidades e a influenciar o outro de uma maneira positiva. No filme, a definição do indivíduo não é o mais importante, mas sim a compreensão e aceitação do ser que cada um é.

Em 110 minutos de fantasia, o filme destaca-se ao nível sensorial. A sonoridade clássica joga em perfeita sintonia com a sequência de planos apresentados, e combina com a visualidade característica presente em toda a obra. É deslumbrante a forma como, visualmente, os planos a preto e branco – talvez uma mensagem de que todas as questões abordadas já vêm de um passado longínquo – contrastam com as raras cenas de cor fugaz que remetem para um mundo de sonho e devaneio, ajudando a esclarecer diferentes momentos e interpretações da obra.

“Les Garçons Sauvages” é uma materialização surrealista do queer, esperança, mudança e, acima de tudo, da liberdade sexual.

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