O controlo e a rotina: a forma de fazer, a minúcia e a economia, o corpo como uma regularidade, a socialidade como uma ritualização, as regras como o jogo de uma vida métrica, a medida como uma linha ao mesmo tempo possível e impossível de manter sempre certa, formal e contida. Formalidade e contimento são os parâmetros temáticos da vida de Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis). São as suas figuras de permanência. O dia é um ato demorado e de marcação temporal: as rotinas são a definição tanto de uma estilística criativa quanto de uma postura vivencial. O modo de vestir é repartido, cadenciado, sequenciado. A equivalência da sua sequenciação é tão métrica quanto o são os planos que assim a fazem: peça a peça, gesto a gesto, momento a momento.
A calma e a solenidade: enquanto chefe criativo da casa de alta costura que carrega o seu nome, o rito dessa mundanidade é fundamental para a sua entronização como um artista com a peculiaridade que só a ele o define, manifesta e configura como uma marca inquebrantável. Ele necessita de rotinas que lhe permitam a completa irradiação do seu talento e saber fazer do métier único: o silêncio ao pequeno-almoço para que possa desenhar figurinos futuros, a quietude calada aquando da preparação dos tecidos e do fazer das formas roupais, a deferência (igualmente silenciosa) dos subordinados/as que materializam as suas visões criativas, o amor e a admiração subjugada das mulheres de quem faz as suas manequins e âncoras temporárias da inspiração (primeira perversidade, se diga). A rotina mais estranha com que Paul Thomas Anderson o imbui é exatamente essa, a de precisar, a intervalos regulares, de uma nova mulher que seja um corpo para experimentação de formas, modelagem de vestidos a vender, e mais ainda, corporalidade e cumprimento do desejo.
O controlo a que ele tanto aspira, base fundamental para a sua criatividade, é só prestada e conseguida através dessa perversa regularidade: um novo corpo feminino, a ter e usar, espicaçador – em todos os sentidos – da sua energia artística, a expulsar e deitar fora quando ele já é pesado e incapaz de espoletar o ato criativo (e o desejo desse corpo). Uma tal misoginia é-lhe permitida – também perversamente – pela qualidade e despacho da gestão da sua irmã Cyril Woodcock (Wesley Manville), a chefe financeira e gerente da Casa de Woodcock, a incumbida de fazer sair as mulheres exauridas de função inspiradora-corporal, mas não sem levarem – por sugestão do próprio Reynolds – um dos vestidos de que foram corpo de inspiração. A sua perversidade, a de Cyril, é a de saber claramente o modo de funcionamento do seu irmão – sob a forma de fases artístico-criativas – e de como elas estão ligadas ao surgimento do interesse por uma outra mulher. Perversamente, ela sabe que enquanto prosseguirem esses ciclos, haverá um continuado output de novos modelos por parte do seu irmão e assim o controlo sobre as finanças do seu negócio, na medida da também continuada venda de peças de vestuário e o consequente prosseguimento da atividade da sua empresa. O espoletar do descontrolo e da ainda maior perversidade ocorre exatamente quando Cyril manda Reynolds para a casa de campo – a qual é uma réplica, na sua estrutura de casa/oficina, do estabelecimento principal citadino – de modo a que o ejetar da corrente mulher-corpo não seja um espetáculo de paixões e prantos indignos de um criador e de uma casa-nomeie gabarito.
No vazio que é razão da procura, Reynolds viaja com o propósito claro de encontrar a necessária mulher-corpo que lhe suportará nova fase criativa, e no fim da viagem noturna, tida a grande velocidade – o modo como conduz o seu carro, a alta velocidade, é um outro exemplo de controlo, mas paradoxalmente e algo perversamente, no limite do descontrolo – encontra-a, porque olha e perscruta, em Alma Elson (Vicky Kriers). Um novo corpo, uma nova ânsia e uma nova construção, um novo molde para começo da sua (re)criação. O processo é o mesmo, assim se depreende: a medição da figura (com Cyril a apontar as linhas que perfazem uma métrica corporal que definirá Alma aos olhos de Reynolds), um primeiro vestido que a testa, a vinda para a cidade, novos testes e novas provas, a função de modelo de desfile, a consumação da relação carnal.
Depressa Alma se torna presa das idiossincrasias de Reynolds e das suas rotinas que não podem ser interrompidas ou modificadas. A cena do jantar-surpresa – e quanto Cyril a avisou de que ele não gostaria de ser assim surpreendido – revela o choque entre os dois – um entre classes – e em que Alma efetivamente clarifica a natureza de todo o entorno em que Reynolds se move: o de um jogo ritualista, feito de elites endinheiradas e princesas a casar, de deferências ilusórias tidas num mundo que está já em transição para um outro (o tradicionalista Woodcock começa já a perder clientes para outras casas), e que é tão somente isso, um grande, grande jogo de vazios. Perverso, com certeza.
O enfado chega. Reynolds implica com Alma. Rejeita-a com o silêncio, com a sobranceria. Ela envenena-o. Ele adoece. Ela pode então sobrepor-se a ele. Tomar conta dele. Inversão de papéis. O misógino é agora o fraco. Fraqueza-amor que o leva a pedi-la em casamento. Mas ela, em vez de responder, pede-o a ele em casamento. As personalidades equivalem-se. Controlo contra controlo. As lutas e choques continuam. Como equilibrar a equação? Pela aceitação da perversidade. Se a questão é a de balancear os termos de controlo – e assim fazer prosseguir a senda de criatividade – então Reynolds tem que saber o quanto ela o vai fazer ficar doente, o quanto ela o vai envenenar, comer a refeição envenenada, beijá-la após isso, chamar o médico para se certificarem que não será demasiado o grau do veneno. E depois ser por ela tratado. Controlo da doença = controlo do amor = controlo da criatividade. É essa a equação resolutiva de Paul Thomas Anderson.
© 2022 Luís Miguel Martins Miranda